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Dos primeiros anos após a independência nacional e a minha parte do 5 de Julho
Colunista

Dos primeiros anos após a independência nacional e a minha parte do 5 de Julho

1. Um dia, ao fim da tarde, há cerca de um ano, fora participar num evento dinamizado por um dos jovens de regresso a Cabo Verde, depois de ter sido selecionado para o programa YALI, Iniciativa para Jovens Líderes Africanos, na sigla em inglês, criada por Barack Obama, então presidente dos Estados Unidos de América. Na plateia, há um jovem sedento de quase tudo que dispara críticas contra a presença do Estado na economia de Cabo Verde. Na minha intervenção, fiz apenas um comentário genérico, procurando confrontar algumas opiniões manifestadas e reservei para o fim uma curta conversa, à parte, com o jovem contestatário. Abordei-o à porta, de saída, e tentei demonstrá-lo como é fundamental que o Estado seja presente, interventivo e proprietário!

2. A necessidade desta intervenção do Estado é muito maior num país de elevado índice de pobreza, como Cabo Verde, de modo a criar oportunidades para todos e não implantar um sistema obcecado exclusivamente com o lucro, cuja uma das principais consequências é reforçar ainda mais e de forma crescente a onda de excluídos. A conversa evoluiu até chegar ao ponto em que ele me diz, assim: “Pedro Pires é um dos maiores responsáveis pela situação atual deste país porque, na altura da independência, ele recebia as ajudas que eram para serem distribuídas ao povo e vendia tudo!”. Talvez, como sugere o meu amigo José Casimiro Pina, este jovem defendesse que – já desde a altura da independência – as ajudas recebidas deveriam ser "doadas" a privados que, depois, iriam vender ao povo como forma de "dinamizar a economia e o sector privado", "gerando crescimento e emprego"! Isto para levar à reflexão se os privados teriam também utilizado os seus lucros e construído escolas, hospitais, postos de polícia, estradas, portos e aeroportos; e financiado milhares de bolseiros no estrangeiro a título gratuito - como fez o Estado no período 1975-1991;

3. É imperioso sublinhar que a afirmação deste jovem constitui um indicador que serve de amostra para a realidade sociopolítica vivida e representa, simultaneamente, duas questões fundamentais relativas à sociedade caboverdeana contemporânea: (i) a perigosa ascensão do mito de desvalorização da “reciclagem da ajuda” e (ii) o vazio de conhecimento em que os jovens, como este do evento no Palácio de Cultura Ildo Lobo, estarão cada vez mais mergulhados!

4. Fenómenos como a pulverização do conhecimento, multiplicação de fontes de informação e relativização de tudo permite que, hoje, mais do que nunca, tenhamos no mesmo plano posições e os seus contrários, lado a lado, a circularem como verdades sinónimas. Se para este jovem, o facto de, nos primeiros anos de independência, o encaminhamento de uma parte das ajudas para ser vendida, constituiu uma das piores decisões tomadas; eu, da minha parte, considero que a decisão de não distribuir gratuitamente a totalidade das ajudas recebidas e – pelo contrário – ter-se optado pelo seu armazenamento parcial e criação de uma empresa específica para a sua comercialização – a EMPA, Empresa Pública de Abastecimento – terá sido uma das decisões mais sábias para um país recém independente, pobre de recursos naturais, com elevados índices de analfabetismo, sem infraestruturas, nem equipamentos públicos, como escolas, hospitais, universidades, etc. Foi a venda de parte das ajudas recebidas que permitiu ao Estado a angariação de recursos que, por sua vez, iriam pagar salários e financiar o desenvolvimento de setores para os quais a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) não chegava! Foi uma forma inteligente de encontrar os primeiros recursos próprios para um país que não tinha nada para vender, nem petróleo, nem diamantes, nem prata, nem ouro, nem couve, nem alfaces;

5. Tivesse sido seguida a ideia de base dessa estratégia, talvez, estivéssemos hoje num patamar de autonomia mais elevado. A “reciclagem da ajudacontinha a essência de se construir algo nacional, muito contrária à ideia predominante atualmente que é a de desconstruir, vendendo e delapidando os recursos e as infraestruturas arduamente conquistados ao longo de décadas! 

6. A associar-se a estes momentos de ruturas do próprio Estado, chegamos aos 44 anos da Independência Nacional com vários discursos a atingirem os seus pontos mais altos em termos de ruído e de fomento do ódio entre ilhas do arquipélago. Há (i) o discurso da desvalorização da própria independência e dos seus feitos imediatos; (ii) o discurso do desprezo pessoal pela independência; (iii) e o discurso de criação de novas repúblicas dentro da república, o que intrinsecamente, contém a ideia do fim da própria república. Todos estes discursos têm efeitos diretos no seio de jovens – o que equivale a dizer – são discursos com desastrosos efeitos no futuro. Discursos cujas origens e disseminação na sociedade são da responsabilidade de atores políticos da categoria de deputado, presidente de câmara municipal e ministro da república - todos bem identificados

7. É este o quadro de atitudes, comportamentos e discursos – por parte de quem é considerado como referência social – e, pior ainda, do silêncio vivo e conivente dos "acusados" que optam pelo convívio entendido como civilizado com os detentores desses discursos detratores, longe de imaginarem que, assim, até legitimam esses mesmos discursos, a ponto de até começarem a serem vistos como verdadeiros. É deste modo que se torna possível encontrar um jovem que condene euforicamente as decisões tomadas nos primeiros anos após a independência, mas que até tenham sido determinantes para construir os alicerces deste país;

8. Por outro lado, será impossível apagar este feito maior da caboverdeanidade, uma vez que é a independência que cria a República e o Estado “de” caboverdeanos. Sem a independência não existiria o caboverdeano de “papel passado”. Teria sempre um outro bilhete de identidade e um outro passaporte. Nem tão pouco, será possível refundar a Nação e a República. São instituições que só se fundam uma única vez! Estas são as razões pelas quais quero afirmar aqui e agora: não abro mão, de forma nenhuma, da minha parte do “5 de Julho”!

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine