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ENTREVISTA: “Fazem falta ao mundo líderes que sejam capazes de dialogar” – Rui Marques, Presidente do Instituto Padre Vieira
Entrevista

ENTREVISTA: “Fazem falta ao mundo líderes que sejam capazes de dialogar” – Rui Marques, Presidente do Instituto Padre Vieira

Rui Marques, Presidente do Instituto Padre Vieira, está em Cabo Verde para o encerramento, esta sexta-feira, de uma formação para jovens líderes promovida pela Academia de Líderes Ubuntu, em parceria com a Câmara Municipal da Praia. Nesta entrevista, destaca a importância dessa iniciativa para fortalecer a liderança centrada no conceito africano de Ubuntu, que valoriza o cuidado, o diálogo e a construção de pontes. Marques, um amigo do arquipélago, também aborda os desafios enfrentados por Cabo Verde, a diáspora cabo-verdiana e a migração circular, enfatizando a necessidade de esperançar e acreditar na capacidade das sociedades em superar obstáculos e construir um futuro melhor.

Santiago Magazine - Novamente em Cabo Verde, qual é o propósito da sua visita desta vez?

Rui Marques - Mais uma vez, visito Cabo Verde, que é sempre uma alegria. São múltiplas as visitas que já fiz a este país, mas desta vez venho no quadro da Academia de Líderes Ubuntu, para o encerramento deste segundo ciclo de formação de formadores. Uma iniciativa da Câmara Municipal da Praia e de um conjunto de líderes que tinham feito a Academia Formação de Formadores em 2018 e que agora retomaram nesta iniciativa da autarquia a possibilidade de fazer mais um ciclo de formação. Portanto, venho fazer o encerramento, a  entrega dos diplomas e poder estar com esta Comunidade de novos líderes Ubuntu que se formaram durante duas semanas de formação.

Quais serão os benefícios que a cidade da Praia e, de forma mais ampla, Cabo Verde poderão colher a partir desses novos líderes formados com a abordagem Ubuntu?

A Praia e  Cabo Verde ganham, em primeiro lugar, por terem um povo e têm. O povo cabo-verdiano mostrou, ao longo da sua história, o seu caráter, a sua energia, a sua capacidade de vencer obstáculos, mas creio que é preciso continuar a ganhar ânimo, energia e conhecimento para enfrentar os desafios que vão mudando ao longo dos tempos.  Creio que todas as sociedades, e também nesse sentido a Praia, Santiago, Cabo Verde no seu todo, precisa de reforçar este sentido de liderança, mas de liderança na perspectiva que aqui a Academia Ubuntu traz. O mundo significa Eu sou porque Tu és, Eu só sou pessoa através das outras pessoas. É um conceito africano, um presente para o mundo e que nos traz um tipo de liderança centrado na liderança servidora, na liderança não como poder ou como servir-me a mim mesmo, mas o que é que eu posso fazer para servir a comunidade, para servir os outros. A liderança como ética do cuidado, cuidar de mim próprio, cuidar dos outros e cuidar do planeta. É a liderança como capacidade de construir pontes. Deixe-me sublinhar esta dimensão, que hoje faz muita falta no nosso Mundo, que possamos ter líderes que sejam capazes de dialogar, que sejam capazes de estabelecer compromissos, que sejam capazes de ser construtores de pontes e, por isso, Eu creio que desta experiência ficará um pequeno contributo, com certeza, mas um contributo para ter  nestes formadores um potencial de replicação de outras ações que permitam esta cultura de liderança, baseada e inspirada em valores de uma filosofia africana para poder ter melhores sociedades, onde os líderes possam servir, possam cuidar e construir pontes.

Com o seu conhecimento profundo sobre Cabo Verde, poderia compartilhar as transformações que observou desde as suas primeiras visitas até o momento atual?

As minhas visitas Cabo Verde são muito anteriores a esta experiência da Academia de Líderes Ubuntu, por exemplo, Eu fui Alto Comissário para a Imigração e Diálogo Intercultural em Portugal e, portanto, tinha uma relação muito próxima com Cabo Verde no que diz respeito às questões do acolhimento e da integração dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal. Aliás, foi nesse quadro que fiz algumas visitas muito importantes e que conheci personalidades que muito estimo e admiro.

E o que sente em relação a estas visitas?

Cabo Verde tem feito um trajeto extraordinário nestas últimas décadas e, muitas vezes, se calhar os cabo-verdianos não têm noção disso, porque estão a viver em cima da realidade, com tantos problemas e tantos desafios. Talvez um olhar externo possa dizer isto. Cabo Verde tem feito um trajeto extraordinário em termos de desenvolvimento social, económico e humano, embora saibamos que ainda estão muitos problemas para resolver... ainda há muitas dificuldades e é evidente que estes últimos tempos, da pandemia e agora das consequências da guerra e todos os impactos nos custos da energia, nas taxas de juro, trarão problemas à sociedade cabo-verdiana, como a todas em todo o mundo. Mas se olharmos numa perspetiva de profundidade, o que eu encontrei foi sempre um Cabo Verde que foi melhorando ao longo do tempo, que vencendo obstáculos, que foi encontrando saídas para os seus desafios. Sendo que continua a ter desafios para resolver e continua a ter capacidade.

E todas essas mudanças estão, em grande parte, relacionadas com a capacidade dos líderes cabo-verdianos, não é verdade?

Eu acho que só foi possível o trajeto que foi feito por Cabo Verde, porque tem, primeiro que tudo, um povo como tem. Quem faz as mudanças de fundo é o povo, não são só os líderes, ou seja, homens e mulheres capazes de vencer condições adversas, enfim difíceis, e que são capazes de ter um caráter de resiliência e de construção de esperança. Mas, em geral, o padrão de liderança em Cabo Verde é bom neste sentido, quer dizer que só é possível alcançar os resultados que foram alcançados porque os cabo-verdianos têm, quer ao nível político, quer ao nível técnico, muitos quadros qualificados e muitas pessoas que foram capazes de dar o seu melhor para que o PIB tenha duplicado, para que Cabo Verde tenha saído do grupo de países mais pobres estando hoe no dos países de renda média e, portanto, já não é um país considerado dos mais vulneráveis do mundo. Isso diz muito das lideranças cabo-verdianas. Isto não quer dizer, como é evidente, que não existam maus exemplos, que não existam pessoas que não estiveram à altura.

No entanto, é possível que ainda haja aspectos a serem aprimorados... O que acredita que poderia ser melhorado?

Eu sou só um amigo Cabo Verde, não me compete de todo dizer o que é que falta.  Serão os cabo-verdianos que terão que encontrar essa resposta, a mim compete-me como amigo de Cabo Verde estar ao lado como estamos agora com o projeto da academia de líderes Ubuntu. Este projeto está em 18 países do mundo, tinha tido aqui uma primeira edição em 2018, agora tem uma segunda. Enfim, é  estar ao lado de Cabo Verde para, no quadro desta Academia de Líderes Ubuntu, poder servir e poder ajudar naquilo que é a vontade e a autonomia dos cabo-verdianos na construção do seu futuro.

Com certeza, porém, considera relevante expandir a presença da Academia Ubuntu para outras ilhas e municípios?

Eu creio que poderia ser útil neste sentido. Como tem acontecido noutros países, temos cá, por exemplo, também a equipa da Academia de Líderes Ubuntu da Guiné-Bissau, existe hoje um trabalho muito grande da Academia na Guiné e eu creio que este recurso poder ser partilhado com outras ilhas, com outras comunidades de Cabo Verde. Seria uma vantagem, mas isso competirá aos cabo-verdianos decidir. Da nossa parte o que fazemos, com muito gosto e empenho, é partilhar gratuitamente, porque sabemos que este espírito Ubuntu faz falta ao mundo. Gostava de sublinhar isto, o mundo precisa do Ubuntu, de uma capacidade de se entender em relação a interdependência, perceber que só juntos conseguiremos encontrar soluções para o futuro, seja dentro do nosso país, seja a nível global.

Sendo que será recebido pelo Presidente da República, José Maria Neves, nesta quinta-feira, o que pretende transmitir durante o encontro?

Primeiro é agradecer muito ao Presidente da República esta honra que me concede com esta audiência e dar-lhe conta do que estamos a fazer desta iniciativa e poder trocar algumas impressões neste sentido sobre este projeto em concreto, a Academia de Líderes Ubuntu e em que medida é que ele (o projeto) pode ser útil a Cabo Verde. Mas, sublinho, é uma grande honra que nos é concedida pelo Presidente da República ao receber-nos e ao poder de ter de viva voz a referência ao trabalho que está a ser desenvolvido e, seguramente, aprenderei muito com o Presidente da República, enfim, é uma figura notável que todos admiramos e que estes minutos que teremos de conversa são para mim sempre uma fonte de aprendizagem.

Ao encerrar a formação para os jovens líderes Ubuntu, qual mensagem principal planeja transmitir a eles?

Vou dizer-lhes que o mundo está difícil e que, mais do que nunca, é preciso esperançar. Esperançar é um conceito que um pedagogo Paulo Freire, brasileiro muito conhecido, falava e dizie que é preciso esperançar porque ter esperança não é ficar à espera, mas sim arregaçar as mangas, lançar mãos à obra e, com outros, fazer melhor.  Ora nós precisamos, perante um tempo que está difícil, muito conturbado a nível Internacional, de esperançar e isso quer dizer lançar mãos à obra para construir um mundo melhor. Essa será seguramente a primeira mensagem. A segunda mensagem é que nós precisamos acreditar que este esperançar pode trazer transformações. Mandela dizia, tudo parece impossível até que seja feito. E, neste sentido, nós precisamos de acreditar mesmo naquilo que parece muito difícil. Cabo Verde tem muitos desafios que, às vezes, parecem difíceis de resolver, mas é preciso acreditar que pode ser possível e que a vontade humana, quando trabalhamos juntos, somos capazes de nos unir, dizer "Djunta Mon" e agir coordenadamente podemos vencer. A terceira é que possam dar o seu melhor nesta perspectiva da construção de pontes. Eu creio que o mundo precisa muito e, se calhar, Cabo Verde também. Todas as sociedades hoje têm uma pressão muito grande para a polarização, para o confronto para o conflito, seja na política, seja na sociedade. Claro que há um espaço para a discussão política, para as diferentes perspectivas, mas, acima disso, temos que saber construir pontes de dialogar, ver as perspectivas de cada parte e encontrar caminhos partilhados. Só quando conseguimos construir pontes é que conseguimos sociedades que funcionam melhor, que são tolerantes, que são capazes de encontrar o melhor de si próprio para construir futuro, portanto, são estas as mensagens.

Tendo em vista que abordou a importância de "esperançar" e de agir de forma proativa e sendo também notável que possui um amplo entendimento do fenómeno das migrações, nesse contexto, em Cabo Verde, enfrentamos um cenário onde muitos jovens estão deixando o país e optando pela emigração, por vezes em condições insatisfatórias, considerando a sua perspectiva sobre o "esperançar", poderia comentar sobre como esse fenómeno se relaciona com a ideia de cultivar esperança e ação positiva?

Este é um tema muito interessante, quando eu era Alto Comissário para Imigração dizia que os migrantes eram peregrinos da esperança. São sempre homens e mulheres que vão à procura de uma vida melhor, que procuram para si para a sua família condições de vida melhores  e tal como Cabo Verde, Portugal também teve uma história de emigração. Houve muitos portugueses que emigraram para França, Estados Unidos, Canadá... Em alguns até estão junto com as comunidades cabo-verdiana. Agora a migração para ser uma coisa boa deve ser fruto de uma liberdade de escolher entre o poder ficar ou sair. E quando as pessoas não têm outra solução senão sair, senão emigrar, é sinal que temos aí um  problema para resolver, ou seja é necessário que se crie, tal como em Cabo Verde ou em Portugal, condições para que os jovens possam, se quiserem e se for essa a sua vontade, permanecer no seu país. Que a emigração não surja porque não existem outras alternativas. No entanto, eu gostava de sublinhar que os migrantes são uma força extraordinária que constrói as sociedades. Cabo Verde, como Portugal, beneficiou muito das remessas dos seus emigrantes, do conhecimento e das redes que se foram constituindo e, portanto, a Diáspora cabo-verdiana é uma força enorme da nação cabo-verdiana. É outra ilha, no sentido que representa uma força grande.  Eu acho que devemos olhar a emigração no sentido que pode ser positivo, se for livre, se resultado da escolha entre ficar ou partir e poder, efetivamente, existir essa escolha.

Entretanto, acredita que ao capacitar jovens líderes, eles possam atuar como catalisadores para incentivar o desejo de permanecer e contribuir para o progresso da sociedade cabo-verdiana?

Cada um deles dirá. Mas eu sei que só conseguiremos desenvolver mais um país, criar oportunidades de emprego, empresas, oportunidades de formação, oportunidades de ter acesso a uma habitação quando temos capacidade de iniciativa, por exemplo, para criar empresas, desenvolver projetos que gerem emprego e que possam, por essa via, criar oportunidades para jovens. Eu acho que líderes  com este sentido de serviço de cuidado podem ajudar ao desenvolvimento e, logo, podem ajudar que se criem condições para que as pessoas não sejam obrigadas a emigrar. Agora eu creio que vale a pena trabalhar por isso, mas vale a pena também não ter um olhar excessivamente pessimista sobre a emigração no sentido de que uma desgraça nos está a acontecer com os nossos jovens a emigrar. Hoje há uma outra realidade, que no tempo dos nossos pais e nossos avós não era tão frequente, que é chamada de migração circular. Há um vaivém que, portanto, não são emigrantes que partem para sempre e nunca mais voltam, muitos deles até são capazes de poupar e trazer capacidade de investimento. Regressam ao seu país, investem em pequenos negócios, em novas empresas, na sua própria casa, etc. Portanto, a emigração não é uma coisa para sempre é um vaivém, é chamada migração circular e, por isso, em síntese, precisamos de criar condições para que a emigração seja resultado de uma escolha livre e não uma obrigação por não ter aqui solução, não olhar com drama sobre a emigração e perceber como é que podemos potenciar e tirar benefício da nossa diáspora.

Gostaria de acrescentar mais algum ponto antes de concluirmos?

Só dizer que os cabo-verdianos, como os portugueses, são muitas vezes muito pessimistas sobre a sua realidade, porque estão muito em cima, vivem nas dificuldades todas e eu como voz externa, mas amiga e conhecedora da realidade de Cabo Verde, realço o caminho extraordinário que Cabo Verde fez nas últimas décadas. Talvez hoje os dias sejam difíceis. Talvez os resultado dos últimos anos da conjuntura internacional estejam mais complexos, mas os cabo-verdianos e as cabo-verdianas têm todas as capacidades, todos os recursos, determinação r caráter para enfrentar as maiores dificuldades e esta crise que hoje eventualmente se vive há de passar e melhores dias virão.

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