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Cabo Verde se Transformou em uma República de Contradições?
Ponto de Vista

Cabo Verde se Transformou em uma República de Contradições?

Com a decisão do TC, instituiu-se em Cabo Verde, ao que parece, duas constituições: uma formal e escrita que todos juraram guardar, respeitar e defender; e uma outra, real e fática que resulta de uma interpretação, sem limites, cujo poder e alcance, no entender do TC, é superior às normas constitucionais escritas.

“A Constituição material, efetiva, de um Estado pode mais facilmente ser identificada nos costumes e praxes constitucionais do que no texto propriamente dito. [...] A doutrina aceita, sem maiores reservas, o costume secundum constitutionem e praeter constitutionem, mas rejeita, por inadmissível, o costume constitucional contra constitutionem”

Luís Roberto BARROSO in Interpretação e Aplicação da Constituição

(Juiz do Supremo Tribunal Federal do Brasil)

 

Não era minha intenção voltar a este assunto, mas não pude resistir face ao recente  Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) nº 41/2023 que rejeitou, “por manifesta falta de legitimidade”, o requerimento apresentado pelo Deputado António Monteiro, em nome dos 15 Deputados, subscritores do pedido de fiscalização abstrata de constitucionalidade da Resolução 3/X/2021, por, segundo o TC, o requerente ter agido sem o mandato dos restantes 14 deputados.

A decisão do TC veio carimbar, com caráter de irreversibilidade, o douto acórdão nº 17/2023 que instituiu “informalmente” costumes constitucionais contra a constituição no nosso ordenamento jurídico-constitucional.

Confesso que não tinha nenhuma expetativa quanto a uma eventual mudança na posição do TC. No entanto, tinha uma ténue esperança que esse órgão jurisdicional se iria predispor a atender e a prestar esclarecimentos, clarificando muitos pontos obscuros que resultaram da sua inesperada, quanto insólita, decisão. Mais ainda, não esperava que o TC se estribasse num formalismo legal e procedimental, que em muitas situações fez vista grossa, para recusar a prestar esclarecimentos e a clarificar pontos duvidosos e contraditórios do polémico acórdão.

Penso que à opinião pública era devida esclarecimentos, como ao próprio parlamento se impunha fornecer-lhe explicações adicionais, uma vez que há deputados que não sabiam o que era uma “revisão informal da constituição”, e muitos não sabiam, e continuam a não saber, o que o TC tinha decidido, já que todos eles julgaram, e muitos mantêm-se convictos, que atuaram no quadro da legalidade instituída e não na legalidade paralela, como o TC interpretou e julgou que aconteceu.

No entanto, gostaria de declarar, sem nenhuma hipocrisia, que tenho muito respeito e consideração pelos Venerandos juízes do Tribunal Constitucional, especialmente pela sua competência manifestada em várias ocasiões e, com realce, pelo trabalho meritório que têm desenvolvido a frente desta importante instância jurisdicional do país.

Importa, no entanto, sublinhar que a crítica que aqui formulo às suas últimas decisões é construtiva, não é pessoal e nem procura apoucar ou achincalhar o TC, até porque privo amizade pessoal com alguns dos seus ilustres juízes.

Entretanto, enquanto cidadão deste país, e agente ativo da sociedade, gostaria que as decisões do TC fossem claras e convincentes, porque se elas estiverem amparadas nesses pressupostos, a tranquilidade minha e de outros cidadãos estaria acomodada e as inquietações que nos assaltam estariam pacificadas.

Infelizmente, o conteúdo do acórdão 17/2023 não me trouxe tranquilidade e suscitou em mim muitas inquietações, porquanto a minha expetativa era a de poder ler um acórdão sustentado em bases jurídico-constitucionais, em concordância com o nosso quadro normativo, e suportado o seu conteúdo pela indispensável coerência, consistência e integridade. 

Porém, não foi nada disso que pude ler e perceber da decisão inserida no acórdão 17/2023. O que pude infelizmente constatar é que dela emergem contradições com as próprias posições anteriormente tomadas pelo TC, quando não, se entra em rutura com as próprias regras desse mesmo tribunal.

Com a decisão do TC, instituiu-se em Cabo Verde, ao que parece, duas constituições: uma formal e escrita que todos juraram guardar, respeitar e defender; e uma outra, real e fática que resulta de uma interpretação, sem limites, cujo poder e alcance, no entender do TC, é superior às normas constitucionais escritas.

A fonte de legitimidade para instituir tal regime está por esclarecer, isso se considerarmos que o próprio TC admite que “a sua missão consiste em garantir o respeito pela Constituição”. Ora, se for esta a missão a que o TC se submete, está por elucidar a razão porque deixou de cumprir com a sua missão constitucional. Terá de explicar isso à nação, e ela ficaria imensa e eternamente grata.

Num Estado constitucional como o nosso, cuja constituição é escrita e rígida, em que estão estabelecidos na própria constituição os procedimentos para a sua revisão e aperfeiçoamento, onde as competências e atribuições de cada órgão de soberania estão definidas, no quadro de separação de poderes, não é possível aceitar, sem violar, grosseiramente, a constituição, o costume constitucional contra constitutionem. Aliás, é a própria constituição que o diz no seu nº 3 do artigo 3º que as “leis e os demais atos do Estado, do poder local e dos entes públicos em geral só serão válidos se forem conformes com a Constituição”. E levando até as últimas consequências essa disposição constitucional, o Parlamento em nenhuma circunstância poderia ter produzido ato legislativo que pudesse afrontar a constituição, e se o tivesse feito, como realmente aconteceu, o TC era e é obrigado, por força do disposto no nº 1 do artigo 277º, declará-lo inconstitucional.

O TC não o fez, e só o próprio sabe porque não o fez, optando, ao contrário do expetável, por “trair” a constituição. Um dia se saberá a razão dessa opção do TC pela não defesa do princípio da constitucionalidade estabelecido no artigo 3º da Constituição da República.   

Num acórdão do Tribunal Constitucional Português nº 220/2011, escrevia-se o seguinte e passo a citar com devida vénia: “A alteração de um ato legislativo por um ato que não assume também a natureza de ato legislativo é proibida constitucionalmente. De facto, a Constituição assume o papel de “norma primária sobre a produção jurídica”, o que implica três importantes funções: a identificação das fontes de direito do ordenamento jurídico português, o estabelecimento de critérios de validade e eficácia de cada uma das fontes, e a determinação de competência das entidades que revelam normas de direito positivo (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, p. 605). Jorge Miranda fala, neste contexto, de uma autêntica “reserva de Constituição no domínio das competências legislativas, das formas e da força de lei” (Manual de Direito Constitucional, Tomo V, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2004, p. 197). Como refere este último autor, se é certo que “a Constituição permite ao legislador escolher o tempo e as circunstâncias da sua intervenção e determinar ou densificar o seu conteúdo, desde que respeitados os fins, os valores e os critérios constitucionais (…) já no plano orgânico-formal é completa a vinculação, sob um tríplice aspeto: o dos órgãos, o das formas, e o da força jurídica”. O artigo 112.º concretiza alguns dos princípios que enformam essa “reserva de Constituição”, alguns deles verdadeiros princípios inerentes ao Estado de Direito democrático: o princípio da hierarquia das fontes, o princípio da competência e o princípio da tipicidade das leis. Trata-se, nas palavras de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, de uma “norma concretizadora de vinculação constitucional do legislador quanto à produção normativa” (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª Edição, 2010, p. 52).

Não restam quaisquer dúvidas de que a Constituição da República de Cabo Verde se assume como “norma primária sobre a produção jurídica”, tanto assim é que a Comissão Permanente, para se habilitar a aprovar a Resolução 3/X/2021, invocou o artigo 148º da Constituição e não qualquer costume constitucional contra a constituição.

Neste ponto, importa sublinhar o posicionamento do Juiz Conselheiro, atual Presidente do TC, José de Pina Delgado aquando da sua declaração de voto, inserida no acórdão nº 27/2027  em que afirma que “sempre que se invoca a existência de uma norma costumeira, o Tribunal deverá para a reconhecer e certificar, avaliar, antes de tudo, se há, por um lado, lacuna constitucional a ser preenchida, ou ambiguidade normativa a ser ultrapassada, nas situações em que, respetivamente estiverem em causa costumes secundum ou praeter constitutonem, e, do outro, se ele não se encontra vinculado a uma determinação constitucional de rejeição, caso seja um costume contra constitutionem no sentido já representado, o que deve fazer sempre que ele atinja de modo constitucionalmente ilegítimo as matérias protegidas de revisão e os direitos, liberdades e garantias”.

Sempre que se invoque a existência de normas costumeiras, o tribunal a partir desse input age, afirma o presidente do TC.

Neste caso concreto da constitucionalidade da Resolução 3/X/2021, quem invocou normas costumeiras? Parece que ninguém!

A Resolução 3/X/2021 invoca normas do ordenamento jurídico formalmente existente!

Os 15 deputados, já vimos que não!

A Assembleia Nacional também já se viu claramente que não!

Então o que levou o TC a decidir sobre uma matéria que não lhe foi solicitada a sua intervenção, avaliação e julgamento?

A ser verdade que o tribunal para  “reconhecer e certificar” normas costumeiras precisa que alguém a suscite, então ter-se-á que reconhecer que se está perante uma situação anómala, e uma invasão ilegítima do TC na esfera legislativa, numa clara violação do princípio de separação de poderes. A isso, se poderá chamar legitimamente de “usurpação” de poder legislativo ou de ativismo judicial.

Na mesma declaração de voto, Pina Delgado reconhece que “todas as normas constitucionais, até para poderem produzir os efeitos colimados com a sua criação, gozam de uma proteção especial”. Para de seguida admitir que “o Estado subordina-se à Constituição (…)” … e que “as leis e os demais atos do Estado, do poder local e dos entes públicos em geral só serão válidos se forem conformes à Constituição”. E conclui que, face a essas disposições constitucionais, “isto afastaria o reconhecimento de uma clara, deliberada, intencional e agressiva violação da Constituição por qualquer órgão da República”.

No entanto, Pina Delgado não explica e nem demonstra a graduação da gravidade da violação. Fica por esclarecer se, no caso concreto, quando a Constituição diz que a Comissão Permanente (CP) deve reunir-se nos intervalos das sessões legislativas – e por alguma razão será, uma vez que a rácio que determina que a Comissão Permanente se reúna nos intervalos das sessões legislativas prende-se com o facto da Assembleia Nacional funcionar de forma contínua, de 1 de outubro a 31 de julho – dizia, se  a constituição impõe reuniões da CP nos intervalos das sessões legislativas, pergunto: se a Comissão Permanente pode, à revelia da determinação constitucional, se reunir nos intervalos das sessões plenárias?

Sendo a Comissão Permanente um órgão de substituição da Assembleia Nacional, não pode funcionar em regime de concorrência com ela, por força e determinação constitucional.

Não respeitar isso, é simplesmente não respeitar a constituição que todos juraram respeitar e defender.    

Ademais, a atuação do TC estava condicionada e limitada por disposições constitucionais que apontavam e apontam claramente para a primazia da Constituição da República no ordenamento jurídico cabo-verdiano expressa nomeadamente nos nºs 2 e 3 do artigo 3º, no nº 3 do artigo 211º, alínea a) do artigo 215º, no artigo 262º, o nº 1 do artigo 277º, o artigo 286º e artigo 290º. A Constituição da República não deixou espaço para tergiversações: as normas citadas são claras, objetivas, categóricas, imperativas e, sobretudo, vinculativas.

Não há ambiguidade, nem obscuridade nos articulados citados, simplesmente se exige que os mesmos sejam respeitados e defendidos, especialmente por quem lhe coube a sua guarda e responsabilidade de os defender.

Qualquer interpretação constitucional terá de ter em devida conta a letra e a vontade da constituição. A interpretação contra a constituição, só poderá ter lugar fora da constituição, e consequentemente, fora do regime constitucional que a Carta Magna prescreve, já que ela não consente ser subalternizada, sob pena de sair da esfera do Estado Constitucional.

No dizer de Gomes Canotilho, interpretar normas constitucionais significa “compreender, investigar e mediatizar o conteúdo semântico dos enunciados linguísticos que formam o texto constitucional”.

Não se admite interpretação constitucional que não tenha um mínimo de correspondência ao texto objeto de interpretação.

Marco Dotto Köhler, citando L. L. Streck no seu artigo “Limites Interpretativos e Mutação (In)Constitucional: Legitimidade Democrática do Poder Judiciário, Segurança Jurídica e Interpretação Contra Legem” escreve  que “o texto só será compreendido na sua norma, e a norma só será compreendida a partir do seu texto”, ou seja, não se pode interpretar sem que o texto seja levado em conta, mesmo porque: “A distinção entre as palavras do texto e o conteúdo normativo não pode levar a uma negação da relação entre ambas as coisas”.

Ora, garantir o respeito pela constituição, como o TC advoga ser a sua missão, passa inexoravelmente pela submissão aos ditames constitucionais por dever e por obrigação, e, em coerência, não permitindo, aliás, não admitindo, a violação do que lhe foi posto a sua guarda.

Citando ainda Marco Köhler quando, a propósito dos limites da interpretação, afirma que “Assim, não se pode ler “não” onde está escrito “sim”, pois seria interpretação não suportada semanticamente pelo texto, o que criaria também uma rutura institucional, pois o intérprete estaria contrariando o legislador, que fez a norma com respaldo democrático do voto popular.

Contrariar o texto, quando as palavras da norma não comportem interpretações diversas da textual, literal, portanto, pode resultar no que se chama interpretação inconstitucional”.

Ou seja, transformar o que é manifestamente inconstitucional, não só em constitucional, como ainda lhe atribuindo força para derrogar normas constitucionais que expressem a vontade do poder constituinte (originário e derivado), não poderá ser aceite, sem que se violente a constituição que todos juraram defender.   

No entanto, o TC tinha essa opinião no acórdão 27/2017 quando estabelece que “Para esta Corte Constitucional o âmbito de liberdade de interpretação do aplicador-concretizador das normas constitucionais tem o texto da norma como limite.

Em sede de interpretação da Constituição não cabe ao Tribunal Constitucional considerar se a solução adotada é boa ou má. Essa competência está cometida à Assembleia Nacional em sede de Revisão da Constituição, nos termos e pelas vias nela previstos. A Constituição da República é o que é, e é o que nela está escrito, como expressão de um sistema de princípios e regras”.

Mas o TC disse mais, para fundamentar a sua oposição a revisão informal da constituição, faz esta significativa citação “Perspetiva diferente se deve adotar quanto às tentativas de legitimação de uma interpretação constitucional criadora que, com base na força normativa dos factos, pretenda “constitucionalizar” uma alteração constitucional em inequívoca contradição com a constitutio scripta. […] Esta leitura da Constituição de baixo para cima, justificadora de uma nova compreensão da constituição a partir de leis infraconstitucionais, pode conduzir à derrocada interna da constituição a partir da obra do legislador e outros órgãos concretizadores, e à formação de uma constituição legal paralela, pretensamente mais próxima dos momentos “metajurídicos” (sociológicos e políticos). (Cf. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, 2003, p. 1228 e ss.)”

Mas esta série de citação ficaria completa se não apresentasse este trecho do já citado Acórdão 27/2017 (pag. 9):  “É consabido que, sob pena de inconstitucionalidade, e, logo, de invalidade, todo e qualquer ato (i) deve ser praticado apenas por quem possui competência constitucional para isso, (ii) deve observar a forma e (iii) o processo constitucionalmente prescrito, e (iv) não pode contrariar, pelo seu conteúdo, nenhum princípio ou preceito constitucional”.

Ou seja, neste quadro, o TC não aceita taxativamente atos normativos que contrariem a constituição ou que violem os princípios, regras,  procedimentos nela consignados.

Pois é, a opinião pública merece esclarecimentos sobre um rol de questões decorrentes dessa decisão em relação a qual aguarda respostas do TC, justamente para salvaguardar o bom nome da justiça e das instituições que a administram.  

Eis as questões que o TC terá de esclarecer e clarificar:

O TC está ou não vinculado à constituição? A Constituição é ou não a lei suprema do país? O Estado de Cabo Verde submete-se ou não à Constituição?

Num Estado Constitucional como é o nosso, todos se subordinam à constituição, e ninguém está acima da Lei fundamental. Este princípio é defendido por todos os que se propugnam por um Estado Constitucional e de Direito Democrático, inclusive pelo próprio TC que na página 8 do Acórdão N.º 43/2022 afirmava, a propósito das suas competências, que a “sua missão consiste em garantir o respeito pela Constituição e em especial pelos direitos fundamentais”. Alias não podia ser de outra forma, quando a constituição estabelece a sua supremacia, consagrando o princípio de submissão do  Estado e de todos entes públicos à própria Constituição.

A este propósito importa sublinhar o que diz a doutrina. Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição Portuguesa Anotada referem que o ponto de partida para a compreensão desse enunciado constitucional – quando a propósito da norma da constituição portuguesa, o artigo 204º, que estabelece que os tribunais não podem aplicar normas que violem a constituição ou aos princípios nela consignados – está no artigo 3º da constituição portuguesa que consagra dois princípios estruturantes da  ordem constitucional portuguesa: “1) A subordinação do Estado à Constituição; 2) A exigência da conformidade com a Constituição das leis e dos demais atos do Estado…”.  

Para estes dois constitucionalistas, esses princípios constituem um “verdadeiro ADN do constitucionalismo português”, para depois acrescentarem que os “momentos básicos desta compreensão passaram a dimensões constitutivas do constitucionalismo ocidental” enumerando: ”(1) os tribunais, na qualidade de poder independente, tinham o dever de julgar e considerar nulos todos os atos do Estado que violassem a constituição; (2) os tribunais constituem uma instância  mediadora entre o povo e o poder legislativo, cabendo-lhe, através da interpretação da constituição, o dever de evitar que o legislador  ultrapasse as competências e atribuições que lhe são constitucionalmente fixadas”.

A relevância da constituição, enquanto Lei maior, é também assumida por todos, inclusive pelo TC quando, no acórdão nº 43/2022 (pag. 21), proferido nos autos de Recurso de Amparo Constitucional n.º 29/2021, em que era o recorrente Amadeu Fortes Oliveira, afirma  

que “o Estatuto dos Titulares de Cargos Políticos, aprovado por lei, prevê que são deveres destes (deputados), nomeadamente, defender a Constituição da República e a legalidade democrática. Defender é certamente mais do que respeitar a Constituição, o que significa que o titular de cargo político tem não só de respeitar a Constituição, mas também o dever de a defender perante ataques, que podem visar quer a ordem de competência dos diversos órgãos de soberania, quer os princípios de separação e independência de poderes ou o princípio da lealdade constitucional, (…) Embora, o juramento de entrada em funções dos Deputados não acrescenta poderes aos mesmos, é importante ver que os Deputados, quando prestam juramento, ao abrigo do artigo 89º do Regimento da Assembleia Nacional, formulam um compromisso de honra orientado para a guarda da Constituição da República”. 

Esta vigorosa exaltação da constituição, qual bíblia sagrada(?), foi feita como fundamento para imputar e punir o deputado Amadeu de Oliveira com o inverosímil e insustentável crime de Atentado contra o Estado de Direito. Amadeu de Oliveira é acusado e punido, curiosamente, por “não respeitar” e “por não defender a Constituição da República e a legalidade democrática”, facto que suscita a indagação de se saber se em Cabo Verde temos, não uma, mas duas constituições.

Isto foi escrito num acórdão, no qual a proclamação da constituição como entidade superior é elevada a uma dimensão quase sobrenatural. No entanto, essa postura de veneração constitucional, parece ter servido apenas para sustentar a tese que permitia a punição do deputado por suposto cometimento de crime de Atentado contra o Estado de Direito, porquanto quando as disposições da mesma constituição, que deve ser respeitada por todos, eram manifestamente favoráveis às pretensões do deputado, a opção foi pela não aplicação da norma constitucional formal, preferindo, contra a ordem constitucional, aplicar uma outra constituição, informal e não democrática.

Há, pois, em Cabo Verde uma constituição nos termos da qual se permite que um deputado seja incriminado e condenado por a desrespeitar e por não a defender. Porém, existe uma outra, a que permite que os deputados ajam e violem, de forma reiterada, a constituição, com o fundamento de que estes estão “habituados/acostumados” a violar a constituição (o tal costume contra a constituição que nem quem supostamente se lhe atribui a responsabilidade da sua criação, sabe realmente se o criou).

Mas afinal, nos termos do próprio TC, a todos os deputados não é exigido que defendam “a Constituição da República e a legalidade democrática”? Igualmente a todos os deputados não é exigido o respeito pela constituição? Todos não firmaram, sob juramento de honra, o compromisso de guardar a Constituição da República?

No acórdão 27/2017 (pag. 57) está escrito algo, com o qual ninguém não poderia estar mais de acordo, quando  o TC dissertando sobre a constituição afirma que “A ideia essencial que se pode extrair do princípio da constitucionalidade é que num Estado de Direito como o nosso, a validade dos atos dos poderes públicos, assumam ou não a forma de lei, depende da sua conformidade orgânica, formal e material com os princípios e normas constitucionais”.

Ora esse posicionamento do TC é conciliável com a defesa de costumes constitucionais contra a constituição?

O TC excecionou alguns dos atos dos poderes públicos desconformes à constituição que podem subsistir face ao princípio da constitucionalidade? Não o fez, e nem o poderia fazer, sob pena de violar o princípio constitucional de separação de poderes.

Admitindo como se admitiu no acórdão nº 17/2023  o costume contra constitutionem o TC não entrou em flagrante e inapelável contradição?

O TC arranjou um problema insolúvel  que vai ter de carregar para o resto da sua vida, a não ser que venha publicamente dizer que errou, e, com isso, faça a justiça a quem foi gravemente lesado por essa decisão fora dos cânones constitucionais, porquanto, o TC não pode dizer uma coisa e o seu contrário ao mesmo tempo, uma vez que a soma das proposições contraditórias, neste caso, é igual a zero.

O posicionamento do TC no que respeita a primazia da constituição não fica por aqui. Ora, veja-se, ainda, o que foi dito no citado acórdão 27/2017 (pag. 57): (…) “Neste sentido, nenhum órgão de soberania pode exercer poderes que lhe não sejam atribuídos nos termos da Constituição. Mas também não pode dispor das suas competências, transmiti-las a outra autoridade ou conformá-las de modo diferente. O princípio da prescrição normativa da competência é, numa ordem constitucional de Estado de Direito, manifestação de duas ideias mais fundadas: a de limitação do poder público como garantia da liberdade das pessoas e da separação de poderes e articulação dos órgãos do Estado entre si e entre eles e os órgãos de quaisquer entidades ou instituições públicas”.

Só isto bastaria para derrubar qualquer tese que pretenda atribuir à Comissão Permanente da Assembleia Nacional poderes para funcionar fora das condições previstas na constituição, e caso o TC fosse fiel aos seus princípios e regras, só tinha que declarar inconstitucional resoluções aprovadas em discordância com as prescrições constitucionais.

O parlamento, nesta situação concreta,  desempenhou um papel pouco digno. Assumiu implicitamente, ou por omissão, responsabilidades imputadas pelo TC, enquanto produtor de supostos atos costumeiros, que, em nenhum momento, conscientemente, protagonizou. Aliás, o parlamento e os deputados têm o dever e obrigação de agir no estrito respeito pela constituição e pelo Estado de Direito, uma vez, sob juramento, assumiram o compromisso de respeitar e defender a constituição.   

Como futuramente teremos em Cabo Verde a revisão constitucional, tendo a última sido realizada há 12 anos, deixo uma sugestão aos constituintes da próxima revisão os seguintes:

1) Que façam uma visita à constituição do Timor-Leste que é altamente influenciada pela constituição de Cabo Verde, por ter na sua elaboração a presença e participação de um  autor cabo-verdiano;

2) Que deem uma olhadela no seu artigo 2º que é, praticamente, em tudo idêntico ao nosso artigo 3º da CRCV;

3) Que meditem se, em nome da clarificação, transparência e separação de poderes,   se não se justifica um número 4 no nosso artigo 3º, com uma formulação que permita a constitucionalização dos costumes constitucionais no nosso ordenamento jurídico.

Eis o artigo 2º da Constituição do Timor-Leste:

“(Soberania e constitucionalidade)

1. A soberania reside no povo, que a exerce nos termos da Constituição.

2. O Estado subordina-se à Constituição e às leis.

3. As leis e os demais atos do Estado e do poder local só são válidos se forem conformes com a Constituição.

4. O Estado reconhece e valoriza as normas e os usos costumeiros de Timor-Leste que não contrariem a Constituição e a legislação que trate especialmente do direito costumeiro”.

Assim, agindo desta forma, evitar-se-ia situações aberrantes de termos duas constituições; uma formal e escrita e a outra real e fática;

Livrar-se-ia da tentação, por qualquer motivo, de se pôr em causa a Supremacia da Constituição;

Esconjurar-se-ia a tentação de impor normas inconstitucionais no nosso ordenamento jurídico;

Impedir-se-ia a quebra do pacto político que alicerça a base constituinte traduzida na vontade constitucional;

Evitar-se-ia a instauração da arbitrariedade interpretativa e insegurança jurídica.

O país precisa de paz, tranquilidade, justiça, imparcialidade, previsibilidade, integridade, democracia e estado de direito.

Precisamos de tudo, menos da degradação institucional.  

 

P.S.: No dia 17 de abril está marcada uma audiência para reapreciação da sentença de condenação do deputado Amadeu de Oliveira. Tendo em consideração as peripécias que envolvem este processo, poucos acreditam numa solução justa e sensata, tendo em conta que o direito ao devido processo legal, não foi, de todo, observado.

De qualquer das maneiras, uma certeza já está firmada: a justiça vai sair muito mal deste processo, quer condene ou absolva o deputado Amadeu de Oliveira. E tudo isto está a acontecer, porque a racionalidade não imperou neste caso.

Como me dizia uma pessoa amiga, a justiça cabo-verdiana está perante um dilema existencial: o pior é que não há escolha.  

 

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