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STRIBILIN (23ª Parte)
Cultura

STRIBILIN (23ª Parte)

CXIX CENA

LOCUTOR – As vítimas foram levadas para o quarto de um dos Thugs e foram violadas repetidas vezes. Apresentaram queixa à Polícia mas o processo acabou arquivado por falta de provas consistentes. Três anos depois, o Patrik, amante da Bia morreu depois de uma disfunção intestinal, embora vinha padecendo de tonturas e de outras queixinhas havia já algum tempo. Em menos de um ano após o óbito do Patrik, Bia deu entrada no Hospital com enjoo, tonteiras e dores de cabeça. Sentiu-se depois, dores no estômago e, em poucos dias descambou-lhe uma violenta diarreia aguda. A diarreia era tão veloz e persistente que não lhe dava a possibilidade de alcançar ao kobon com torneirinha fechada. Se conseguisse chegar ao kobon, não lhe era permitida levantar a saia – já que nem cuecas ela usava – para fazer o serviço de cócoras conforme a regra lá no interior da ilha. Passou-se a usar cueiro. Consumia, por dia, grande quantidade. Emagreceu-se de tal forma que metia dó a qualquer bom filho cristão, mesmo quem não a tivesse conhecido antes. O seu cabelo da cabeça começou a ficar liso – como pelo de ratos – e, infrene, pôs-se a cair. Ficou completamente careca em pouco tempo. No exato dia em que fez um ano que o seu amante foi dado à terra, ela saiu da morgue do Hospital já cadáver e com o óbito declarado. Já cinco anos se passaram. Giraldina está com um filho de 4 anos. O menino chama-se Vírgula. Desde o seu primeiro ano de vida não tem saído quase do Hospital. Passa mais tempo aí do que em casa. Diarreia, vómitos, tonturas, desmaios e convulsões frequentes são os sintomas de que ele padece.

CXX CENA

Na Esquadra da Polícia está apenas o Subchefe. O Chefe entra depois, com ar preocupado, tira o boné e pendura à parede, desabotoa os dois primeiros botões da camisa, senta-se numa cadeira e tira uma folha de papel de uma pasta.

CHEFE – Lembras-te daquele caso de assalto e violação de duas senhoras, há já algum tempo?

SUBCHEFE – Claro que me lembro. À Bia e à Giraldina?

CHEFE – Exatamente.

SUBCHEFE – Aquilo foi arquivado por falta de provas.

CHEFE – Vim agora de uma reunião com o Sr. Procurador da República e, conforme ele me disse, surgiram novas evidências. Ele requereu a reabertura do processo e o Dr. Juiz já ordenou as investigações.

SUBCHEFE – Mas aquilo já deve ter prescrito, Chefe! Muitos anos se passaram!

CHEFE – Prescrever-se-ia caso não surgissem novos factos.

SUBCHEFE – Novos factos?! Só agora?!

CHEFE – Uma das senhoras, a Bia, morreu o ano passado.

SUBCHEFE – Mais uma razão para que a ação penal se extinga.

CHEFE – Há dois anos tinha-lhe falecido o amante.

SUBCHEFE – O Patrik. E daí? Há nisto alguma probabilidade consubstanciada ao crime?

CHEFE – O filho mais novo da outra tem 4 anos.

SUBCHEFE – O Vírgula. Filho da Giraldina. Está muito doente neste momento. E nenhum médico consegue descobrir qual é a doença dele.

CHEFE – Ele não está doente neste momento.

SUBCHEFE – Então?! Já não lhe estou a perceber. Essas suas parábolas ultrapassam as minhas capacidades interpretativas. Se o puto está no Hospital internado, ele não está doente?

CHEFE – Ele não está doente neste momento. Nasceu já doente. Só que agora ele passa mais tempo no Hospital.

SUBCHEFE – E já descobriram qual é a doença dele?

CHEFE – Cá os médicos não conseguiram.

SUBCHEFE – E então?

CHEFE – Mandaram realizar umas análises no estrangeiro, e os resultados revelaram-se surpreendentes. O teste de paternidade não confirmou que ele seja filho do Virgulino.

SUBCHEFE – Meu Deus do céu!

CHEFE – A família toda está infetada com o vírus da SIDA: Giraldina, Virgulino, Vírgula e até a Tchetcha.

SUBCHEFE – Com o vírus da SIDA?! A Tchetcha também?! Ave-maria, sem graça nenhuma.

CHEFE – A Tchetcha também.

SUBCHEFE – Mocinha tão nova! Mas como foi que contraiu a doença? Ela não foi violada pelos agressores da mãe!

CHEFE – Pois não. Ela não fazia parte da caravana que ia ao consultório do Carlitinhos nesse dia.

SUBCHEFE – Terá tido algum namorado que tivesse SIDA?

CHEFE – Pelas investigações feitas até agora, ela nunca teve namorado.

SUBCHEFE – Costuma fazer transfusão de sangue?

CHEFE – Pelo que sei, ela nunca levou uma vacina sequer.

SUBCHEFE – Será que foi violada quando ainda era criança e já não se lembra? Ainda há pouco tempo era uma criança, com o nariz atolado de ranho!

CHEFE – Pode até ser obra de algum pedófilo.

SUBCHEFE – Para aí! Ou também vítima do encesto. O pai não tem SIDA?

CHEFE – Grande mistério.

SUBCHEFE – Mistério que talvez Deus saberá desvendar.

CHEFE – De qualquer maneira, nós vamos retomar as investigações. Ela vai fazer os exames ginecológicos e teste da virgindade, mandamos as amostras do ADN do Vírgula para Polícia Judiciária dos Estados Unidos da América, solicitamos que as confrontem com as que têm lá nas suas bases de dados e verifiquem se não coincidem com as de algum deportado.

SUBCHEFE – Se vai fazer isso, podemos então acrescentar um outro expediente.

CHEFE – Qual mais?

SUBCHEFE – Já que a Polícia estadunidense vai colaborar, não vamos mandar amostras só dos que vieram repatriados dos Estados Unidos. Mandamos de tods os Thugs que por aí andam a dar caço-bode às pessoas

CHEFE – Olha!… Tens razão. Já que não vamos pagar nada… aproveitamos.

SUBCHEFE – Há muitos Thugs por aí que são made in cá.

CHEFE – Muito bem. Vai então elaborar uma lista com todos os nomes de caço-bodistas que cá temos, dos Netinhos de Vovô, e junte as amostras de cabelo, unha, sangue, saliva, sémem, fotografias… tudo que cá temos recolhidos.

SUBCHEFE (levanta-se) – Com licença!

CHEFE – E dos que vieram também repatriados de Lisboa.

SUBCHEFE – Com certeza.

CHEFE – Temos também cooperação com o Instituto Português de Medicina Legal.

SUBCHEFE – E há bué tempo que muitos repatriados têm vindo também de lá.

CXXI CENA

LOCUTOR – Virgulino, Giraldina e Tchetcha frequentam uma instituição que trata dos toxicodependentes e pessoas infetadas com vírus da SIDA. A terapia é fundamentalmente baseada em orações e fé firme em Senhor Jesus Cristo. E como complemento, aos toxicodependentes é ministrado a metadona e, aos seropositivos os antiretrovirais. Rebita, um ex-toxicodependente, seropositivo e que liderava um Gang extremamente violento, é o responsável pelo tratamento do grupo onde estão inseridos Virgulino, Giraldina e Tchetcha. Terá aparentemente regenerado, há mais de 6 anos. Já não usa drogas, nem tabaco, nem bebidas alcoólicas. Não assalta as pessoas (pelo menos de forma clara e descarada) e respeita toda a gente, crianças e adultos. É a segunda figura lá na instituição onde alberga e é também adjunto do Pastor, o terapeuta do Centro.

CXXII CENA

O Chefe e o Subchefe estão sentados à uma secretária, conversando-se. Chefe tem um dossiê na mão e vai desfolhá-lo.

CHEFE – Pelo relatório, comprovado pelas análises, não existe indício de que Tchetcha tenha sido alguma vez abusada sexualmente. As perícias ginecológicas e vaginais não revelam dilatação ou rompimento do hímen, nem que tenha havido penetração, mesmo ao de leve.

SUBCHEFE – Então ela está virgem!

CHEFE – Perfeitamente virgem. Pura e casta. Talvez tenha sido contaminada acidentalmente.

SUBCHEFE – É a única hipótese. (Pensa) Mas como?

CHEFE (volta a folha) – Deixa-me ver o resultado dos exames do ADN. (Mal começa a ler, passa para a última página. Com espanto, arregala os olhos e abre a boca, enquanto observa uma fotografia) Não acredito! Como é possível, Pai do Céu?

SUBCHEFE – O quê? (Chefe dá-lhe o dossiê) Como? Uma fotografia do Rebita?!

CHEFE (Toma de novo o dossiê) – Deixa-me ver mais uma vez e me confirmar de que não estou a sonhar. (Contempla minuciosamente a fotografia) Não há dúvidas. Agora deixa-me acabar de conferir o resultado do teste do ADN. (Depois de concluir) Inacreditável! (Passa o dossiê ao Subchefe) Olhe só!

SUBCHEFE (acaba de ler, olha para o Chefe) – Mas na altura em que as senhoras foram vítimas do caço-bode e violação, Rebita já tinha abandonado a organização de Thug e encontrava-se a recuperar na instituição onde ainda se encontra!

CHEFE­ – Pois. E já andava com a Bíblia debaixo do braço a realizar culto ao lado do Pastor.

SUBCHEFE – Há duas semanas estive lá na visita, vi-o a dar conselhos aos enfermos, pedindo-lhes que implorassem perdão a Deus pelos seus passados desregrados, e que mostrassem arrependidos pelos males que causaram aos outros. E o mais chocante, Chefe, é ver Virgulino, Bia e Tchetcha de joelhos, respondendo amém quando o Rebita invoca o nome de Deus e do Nosso Senhor Jesus Cristo.

CHEFE – Confesso que estou confuso, mas quem está nesta foto é mesmo o Rebita.

SUBCHEFE – A fotografia é claramente dele. Não há a mais pequena dúvida.

CHEFE – O nome que também veio no relatório é dele.

SUBCHEFE – Mas é preciso ter boa lata para uma pessoa fazer uma coisa dessas e ficar assim descontraída como se não fosse nada com ela.

CHEFE – Esse tipo de teste não costuma falhar. A ciência não engana. (Toma novamente o dossiê e dá mais uma olhadela no relatório) Está aqui claro: quando ele veio deportado dos Estados Unidos já era seropositivo. E tinha o mesmo tipo de vírus que enfermam Virgulino, Bia e Tchetcha.

SUBCHEFE – E a Tchetcha, meu Deus?! Como foi que se infetou?

CHEFE – Muita coisa há ainda que investigar. Quase tudo falta a esclarecer.

SUBCHEFE – Pois… muita coisa ainda falta.

CHEFE – É urgente que o Tribunal emita um mandado de captura contra Rebita. Só ele nos saberá explicar tudo isso.

SUBCHEFE – Que humilhação… que afronta, meu Deus!

CHEFE (vira a folha do dossiê e continua a leitura em voz alta) – Conforme a perícia efetuada nos laboratórios desta Polícia Científica, há probabilidades de que a jovem Tchetcha terá sido vítima de uma contaminação fortuita, através de um objeto, como o alfinete, por exemplo, partilhado com o irmãozinho para extrair pulguinha dos dedos.

SUBCHEFE – Pelo menos… nesta parte já estamos esclarecidos. Ela não foi violada.

CHEFE – A mãe disse que ela nunca teve namorado e nem quando era criança brincava de mamá ku papá com rapazinhos. Que nunca fez transfusão de sangue, nem vacina alguma vez levou.

SUBCHEFE – Não usa droga e ela é muito recatada.

CHEFE (completamente assustado) – O quê?!

SUBCHEFE (admirado) – O quê… o quê Chefe?

CHEFE – Santo nome, meu Deus!

SUBCHEFE – O quê, Chefe? O que foi?

CHEFE – Os violadores foram: o Rebita, o Djirga e o Badoku.

SUBCHEFE – Badoku?! Ele não é filho da Giraldina?

CHEFE – Badoku violou a própria mãe?!… (Subchefe tapa a mão na cara, vira para a parede e encosta a testa) Víiirgula… Víiir… guuuu… Víiir… guuu laaa… é filho do Badoku?! Do Badoku com a própria mãe?! Repetiu-se a estória grega do Rei Édipo. Só que desta vez Laio não foi morto, nem a sua caravana atacada. E nem foi a Esfinge a destinar rainha Jocasta para esposa do filho. Não nasceram Antígona, Ismena, Etiocles e Polínices. Apenas nasceu o Vírgula, com o destino traçado para viver sem reinar.

O Subchefe desmaia e o Chefe fica atrapalhado.

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Redação