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A Cidade da Praia nasceu a partir de um poço no Taiti
Entrevista

A Cidade da Praia nasceu a partir de um poço no Taiti

No dia em que a cidade da Praia celebra 166 anos (29 de Abril de 1858), Santiago Magazine publica uma grande entrevista com o historiador António Correia e Silva. Origem, crescimento, demografia, cultura e sociologia da maior urbe do país, erguida sobre pântanos, driblando crises sanitárias e sobrevivendo a revoltas até se impor como uma cidade rica e próspera. "Até chegar a capital, a Praia teve de fazer uma viagem histórica longa, cheia de avanços e recuos".

Santiago Magazine - Identifique os principais marcos da cidade da Praia desde o seu nascimento. Já agora onde nasceu a Praia e como se foi alargando?

António Correia e Silva - Uma coisa de que muita gente se esquece é que a Praia começou por ser uma praia de aguada, onde navios que atravessavam o Atlântico vinham abastecer de um produto essencial para o sucesso das viagens intercontinentais: a água doce. Curioso é que essa praia estava situada a meio caminho, numa quase equidistância, entre os dois núcleos que eram então sedes de capitanias: a Ribeira Grande, a sudoeste, e Alcatrazes, a nordeste. Apesar de sedes de administração, estas vilas eram servidas por portos pequenos e sofríveis. É aí que a Praia entra, fornecendo um porto de abrigo e um poço com água com propriedades químicas que a faziam resistente à degradação nas grandes travessias oceânicas. Um recurso deveras precioso para os que queriam lançar novas rotas, criar teias de comércio a longa-distância e erguer impérios, fazendo emergir um novo mundo. Esses não hesitaram em vir solicitar os préstimos desta praia e do seu entorno.

Portanto, posso dizer-lhe, sem sombra de dúvida, que foi a qualidade da água e a bondade do porto que foram as forças parteiras do povoado, foram elas, digamos assim, que trouxeram a Praia para a História. E foi atraído pela água que Vasco da Gama veio cá parar, nos finais do século XV, porque tinha em mira navegar o centro do Oceano até atingir o Cabo das Tormentas, atravessando um enorme espaço sem ilhas de apoio. Aqui ele fundou, em baixo do atual Quartel Jaime Mota, a Capela de Nossa Senhora da Praia de Esperança e, claro está, abasteceu-se de água, lenha e animais para a grande viagem. Este momento está registado no mais célebre dos livros escritos em português, que são Os Lusíadas, de Luís de Camões. O que, convenhamo-nos, constitui um batismo especial, pois registado pela pena de um poeta maior.

No meu entender, o marco zero da Praia é a Fonte Ana, um poço situado no lugar que hoje chamamos de Taiti. Acho que de alguma forma este marco devia ser sinalizado. Até porque ele está reportado pelos grandes viajantes que atravessaram o Atlântico ao longo de séculos. Estou certo de que em qualquer outra cidade do mundo, este poço constaria de todos os roteiros turísticos e históricos existentes, mas entre nós é o que se sabe. Reina um descaso com o património, com a memória coletiva e nesta amnésia prosperam desvarios. Outro marco é a Capela da Praia. Há mapas e imagens que nos permitem recriá-la e inscrevê-la num roteiro histórico e turístico da Cidade. Só é preciso que as autoridades e as forças vivas da cultura desta cidade o queiram, o resto é mais fácil: é fazer. 

 

«Foi atraído pela água que Vasco da Gama veio cá parar, nos finais do século XV, porque tinha em mira navegar o centro do Oceano até atingir o Cabo das Tormentas, atravessando um enorme espaço sem ilhas de apoio. Aqui ele fundou, em baixo do atual Quartel Jaime Mota, a Capela de Nossa Senhora da Praia de Esperança e, claro está, abasteceu-se de água, lenha e animais para a grande viagem. Este momento está registado no mais célebre dos livros escritos em português, que são Os Lusíadas, de Luís de Camões. O que, convenhamo-nos, constitui um batismo especial, pois registado pela pena de um poeta maior».

- E depois deste início auspicioso, o que sucedeu? 

- Na entrada do século XVI, o século da grande abertura do Atlântico, a baía da Praia reforçou ainda mais a sua atratividade face à navegação de longo de curso e foi também utilizada como porto de exportação de algodão e panos para a Guiné, ainda antes da falência de Alcatrazes. O que aconteceu é que alguns moradores da vila de Alcatrazes vieram estabelecer-se junto à praia de Santa Maria para, a partir do seu porto, fazerem as suas armações para os Rios de Guiné, já que, tal como os da Ribeira Grande, gozavam também dos privilégios da Carta Régia de 1466. É claro que isto obrigou a Coroa a criar, na Praia, um almoxarifado, que traduzido para a linguagem de hoje, é uma alfândega. Vieram a seguir muitos mercadores. Na segunda década de Quinhentos, houve um proprietário de terras, fazendeiro exportador de algodão, armador de navios, chamado Gomes Balieiro, que é nomeado capitão da Praia. A Igreja não tardou a comparecer. Há uma notícia que em 1526 estava já em construção, em cima da Achada onde o burgo se implantara, a capela-mor da Igreja de Santa Maria da Praia.Ora, creio que foi a identificação das virtualidades portuárias da Praia que ajudou a minar a existência de Alcatrazes, a tal vila cujas ruínas foram agora descobertas e as razões da decadência são ainda um mistério.

Em 1549, no auge do entusiasmo com o porto da Praia, um guarda-mor da Alfândega escreveu ao rei a dizer que isso tudo era porque aqui havia muitas cumplicidades que permitiam aos mercadores sonegarem os impostos e que eles eram na sua maioria cristãos-novos. Só que o sucesso comercial também atraiu corsários e na segunda metade do século XVI foram muitos os que desembarcaram e saquearam o vilarejo, queimando casas.

 

- Francis Drake foi um deles.

- Mas houve muitos mais. A verdade é que o ruir da pax ibérica sobre o Atlântico Tropical ou se quisermos dizer de outro modo, a morte da ordem de Tordesilhas, repercutiu-se fortemente na Praia. A pressão corsária e as secas dos inícios de seiscentos quase despovoaram a vila. O porto, outrora riqueza, converteu-se então em fonte de ameaça, tanto militar como sanitária.

 

- Como assim? Não foi do porto que veio o sopro que deu vida à Praia. Ou não?

- Sim, foi. Na nova conjuntura, os inimigos dos portugueses e dos espanhóis queriam assaltar e pilhar a cidade da Ribeira Grande, debilitando-a. Porque ela era apetecível pela riqueza, além de constituir também uma das chaves do controlo do Atlântico pelos ibéricos. Acontece, porém, que não era fácil fazê-lo a partir de 1580 com a União Ibérica, pois com a construção de pequenos fortes dotados de artilharia ladeando o porto, qualquer barco inimigo que tentasse desembarcar na cidade da Ribeira Grande cairia sob o fogo cruzado, ao passo que na baía de Santa Maria da Praia, balizada entre a Ponta Bicuda e a Ponta Temerosa, por ser demasiado ampla, não se passava o mesmo. Conclusão: desembarcava-se na Praia para atacar a Ribeira Grande. Foi uma fórmula repetida vezes sem conta.

Me permita falar brevemente da ameaça sanitária. Em finais do ano de 1638, fez escala no porto da vila da Praia uma grande armada luso-espanhola que levava cinco mil homens a bordo, com a missão de reconquistar o Nordeste do Brasil, então sob a ocupação holandesa. Como corria na armada uma epidemia, possivelmente de sarampo, a vila foi contaminada. A razia foi tal que entre os locais e os viajantes ficaram enterrados no pequeno povoado que era a Praia de então mais de 500 corpos. Temos de esperar pelas últimas décadas do século XVII, com a baixa do nível da competição intraeuropeia para o controlo do Atlântico Tropical, para assistirmos o porto a renascer novamente como lugar de escala de barcos. Agora uma escala internacional, com muito mais variedade de nacionalidades do que fora durante o século XVI. Monta-se um grande mercado ao longo da praia de Santa Maria, também chamada de Praia Grande, hoje Gamboa, onde a população vinda do interior da ilha trocava animais vivos e vegetais que produzia por roupa usada trazida da Europa por franceses, ingleses, holandeses e dinamarqueses. É um comércio popular, intenso, ruidoso e muitas vezes gerador de desentendimentos e conflitos. As autoridades portuguesas aceitavam-no mal. Difamavam-no, dizendo que a roupa vinha dos hospitais e pertenciam a pessoas com doenças contagiosas. Nada disso demovia as pessoas locais. Este mercado demorou quase um século até a Companhia Grão-Pará e Maranhão chegar, munida de um alvará secreto que lhe dava monopólio sobre todo o comércio exterior do arquipélago, e quis controlar as trocas.Ela começou para já por colocar os seus armazéns na Várzea, como que a dizer que tudo o que seria vendido ou comprado teria de estar sob o seu controlo e pagar-lhe tributos. Além disso, a Companhia pressionou o governador Saldanha Lobo para encerrar o mercado à beira de água e o recolocar em cima do Plateau, na Praça do Pelourinho, de modo a garantir a cobrança dos seus impostos. Apesar das desavenças com a Companhia, o Governador anuiu e fez publicar um bando determinando isso e punindo os transgressores. Desde então, o pelourinho passou a ser sinónimo de mercado, tanto aqui como no resto de Cabo Verde. Aliás, Saldanha Lobo foi o primeiro governador que veio fixar sua residência na Praia. Não foi por acaso. Trata-se de um marco.

 

- Nesse momento a Praia já era capital de Cabo Verde?

- Sim e não. Porque digo isso? É que a capitalidade da Praia é um processo longo e cheio de ambiguidades. Naquela altura do século XVIII ninguém sabia ao certo onde estava a capital de Cabo Verde, se é que estava em algum lugar. O governador, esse sim estava na Praia, mas o bispo entre São Nicolau e Santo Antão, o Cabido, na Ribeira Grande, os ouvidores, sob pretexto das correições, andando de ilha em ilha e assim por diante. É certo que a Praia era o principal porto, o lugar de maior captação de recursos fiscais, mas não fico completamente tranquilo quando leio ou ouço que a partir da década de 1770 a vila já era capital de Cabo Verde. Essa afirmação, quando muito, é uma meia-verdade.

 

Até chegar à capital, a Praia teve de fazer uma viagem histórica longa, cheia de avanços e recuos, que não é possível reconstituir aqui no espaço de uma conversa, mesmo a traços grossos. Nesta viagem, a vila da Praia de Santa Maria teve rivais de peso. Na entrada do século XIX, a vila de Sal-Rei, com as suas salinas prósperas que atraíam os americanos e o dinamismo do capitão-mor Aniceto Ferreira e mais tarde de Manoel António Martins, é uma concorrente de peso à Praia. Não é por acaso que vai ser ali, na Boa Vista, que os ingleses construirão o seu primeiro porto carvoeiro do arquipélago, bem antes do Mindelo, e estabelecerão o Tribunal Luso-Britânico de combate ao tráfico clandestino de escravos, justo no lugar por onde passava uma rota clandestina que abastecia Cuba e Nova Órleans de mão-de-obra escrava. Outra rival é a Brava, com o seu clima anemo para os funcionários públicos que vinham de Portugal. E outra ainda é a coqueluche dos liberais portugueses, a recém-rebatizada povoação do Mindelo, na ilha de S. Vicente.

 

- Com todos estes rivais, como é que a Praia conseguiu levar a capital ao altar como sua noiva, digamos assim?

- Sim, nos anos 30 do século XIX, a Praia é uma capital improvável. Tem contra ela muitas desvantagens. Uma de peso é a desvantagem sanitária. O burgo era cercado por pântanos, na Praia Negra e na Várzea, e estes eram focos de malária. Os funcionários coloniais que chegavam estavam entre aqueles que normalmente mais sofriam, e muitos deles eram vítimas mortais. A situação agravava-se todas as vezes que chegavam carradas de degredados condenados pela justiça. Nos anos de 1820, a Praia transbordava de degredados mandados vir das prisões lisboetas de Trafaria e do Limoeiro. Naqueles anos, Cabo Verde voltou a ver brancos pobres e marginais, como acontecera no século XVI. Muitos deles assaltavam casas e pessoas nas ruas e becos da vila, assim como nos campos ao redor. Em janeiro de 1823, com o desembarque aqui do corpo expedicionário do exército de Portugal, que veio reprimir uma eventual adesão local à recente independência do Brasil, as condições de vida na Praia complicam-se imensamente e disto resulta uma tentativa de revolta dos degredados. No tempo de D. Miguel, o príncipe que deu o golpe e repôs o absolutismo no poder, derrotando os liberais de 1820, as ruas na Praia acordavam pichadas. O governador Duarte de Macedo vivia atormentado com a possibilidade de uma revolta. Errou apenas na data, pois achava que esta podia acontecer na noite de Nossa Senhora da Graça de 1831, quando a placa que assinalava a Rua Bela de D. Miguel I, que ele mesmo havia inaugurado pouco antes, apareceu coberta de tinta preta. A revolta, aliás, as revoltas vão ocorrer, não naquela altura, mas no tenso ano de 1835, depois de encerrada a guerra civil portuguesa, com a vitória definitiva dos liberais.

 

«Em finais do ano de 1638, fez escala no porto da vila da Praia uma grande armada luso-espanhola que levava cinco mil homens a bordo, com a missão de reconquistar o Nordeste do Brasil, então sob a ocupação holandesa. Como corria na armada uma epidemia, possivelmente de sarampo, a vila foi contaminada. A razia foi tal que entre os locais e os viajantes ficaram enterrados no pequeno povoado que era a Praia de então mais de 500 corpos»

- Foi o ano que os escravos também entraram em cena, não foi?

- Sim, mas não só eles. A Praia continuava a ser socialmente um barril de pólvora. Degredados e escravos trazidos recentemente pelo tráfico clandestino acumulam-se na vila. Para complicar, havia o passivo da guerra civil a ser gerido pelo poder liberal reimplantado. Ontem, como hoje, as guerras civis deixam um legado pesado às sociedades. É neste âmbito que o Governo da Monarquia Liberal enviou para a vila da Praia um batalhão inteiro do exército derrotado. Eram 225 militares acabados de sair de uma guerra civil, carregados ainda de adrenalina e humilhados pela derrota e deportação. Ingredientes socio-emocionais perfeitos para uma revolta. Sabendo disso, as autoridades de Lisboa aconselharam que os militares fossem dispersos pelas ilhas, mas por incúria da Administração Local foram ficando na vila Praia. Na noite de 24 de março de 1835 puseram então em marcha um planeado golpe de estado.

 

Neutralizaram as autoridades, prenderam os oficiais militares e levaram-nos ao Largo do Cemitério da Várzea e fuzilaram-nos impiedosamente. No dia seguinte, convidaram as autoridades administrativas e representantes consulares das nações estrangeiras acreditadas na vila a assistirem um ato político solene de consagração do golpe, aberto com o hino de D. Miguel. Num artigo publicado no jornal New York Times sobre este acontecimento, o cônsul americano William Merril justificou a sua presença no ato, dizendo que se não comparecesse estaria entre as vítimas do dia anterior. Por um minuto, os militares golpistas alimentaram a esperança de fazer aquilo que os liberais haviam feito nos Açores, três anos antes, a partir, curiosamente, de uma outra Praia, que é a Praia de Santa Maria da Vitória, ou seja, que era lançar uma contra-ofensiva sobre Portugal, reimplantando o absolutismo. Acabaram, no entanto, por raptar um barco, no porto, atravessar o Oceano e enfrentar uma aventura digna de romance nos Estados Unidos para onde se dirigiram.

 

Mas o ano não acabou sem que os escravos, agitados pelas notícias de uma libertação geral em gestação, quisessem negociar, primeiro, pacificamente, um acordo que pusesse fim ao seu cativeiro. Até porque a nova Constituição, recentemente aprovada, permitia-lhes alimentar esperanças. Depois, porque a Inglaterra havia acabado de decretar o fim da escravidão nas suas colónias e a notícia logo correu por todo o Mundo Atlântico. Na Praia, os escravos esperaram pela chegada do primeiro governador liberal após a guerra civil. Pereira Marinho, apesar de liberal, não era recetivo àquilo que os portugueses com ironia designavam de “exageros filantrópicos dos ingleses”. Na sua agenda, não havia lugar para acomodar tais reivindicações. Foi então que um conjunto de escravos resolveu pôr em marcha a organização de uma revolta. Eram quase todos homens que haviam chegado relativamente há pouco tempo. Por exemplo, havia um Pedro, mandinga, escravo de Manoel António Martins, Gervásio Carvalho, natural de Guiné, António, que era muçulmano, e o seu nome de origem era Mallamini, mas, claro, havia também crioulos. Pelo que se vê do inquérito construíram uma rede bem-urdida de apoio, mas uma denúncia fez a revolta falhar e a repressão que caiu sobre eles foi forte. O governador convocou uma reunião dos proprietários de escravos de toda a ilha, na qual se decidiu, sob a pressão dos acontecimentos, fuzilar os líderes. Para isso, Marinho organizou uma cerimónia com pompa e circunstância no Largo da Boa Vista, hoje Pracinha do Liceu. Dos três previstos, dois foram executados. Os outros líderes tiveram penas de açoites e foram vendidos para fora da Colónia.

 

- Não acha que devia haver marcos na Cidade a assinalar todas estas revoltas, afinal, gostemos ou não, é a nossa História?

- Claro que acho e estou certo de que cedo ou tarde a História na sua verdade estará presente na Cidade, com foros de cidadania. Isso é riqueza. Material e imaterial. Uma coisa que me impressiona é que quando se visita qualquer cidade europeia, constata-se que a História está presente nas ruas, nas praças, nos edifícios e ninguém diz que isso é vitimização, passadismo, expressões que não são senão formas disfarçadas de censura da memória coletiva ou de historicídio. A Praia precisa descobrir a sua História e ter uma política pública de integrar o seu passado no seu projeto de futuro.

 

- Falemos de cultura. O que carateriza a cultura da Praia, se é possível dizer assim?

- A Praia é uma interface cultural, porque é um lugar de encontro de gente de diversas proveniências. O primeiro grande afluxo de gente, é um afluxo, aliás, cíclico e prolongado no tempo, é de gente que vem do interior da ilha, grande parte dela vinda nas secas e fomes à procura do socorro estatal ou eclesiástico. Ficavam nos arredores e formavam aldeias que se converteram mais tarde em bairros. Historicamente trazem na bagagem os seus laços comunitários, expressos por exemplo nos reinados (ascendente setecentista da tabanca), e também nas esteiras e nas zambunas. Estas manifestações populares impressionaram sobremaneira o ouvidor João Vieira de Andrade, o tal que foi assassinado na vila da Praia em 1762 e inspirou o romanceA Morte do Ouvidor,de Germano de Almeida. As autoridades viam escandalizadas e impotentes estas manifestações que classificavam de “gentias” a invadir os espaços institucionais como a Igreja, por exemplo.

 

Em 1748, um outro ouvidor acusara o vigário da vila, o liberto Paulo Abreu de Lima, de juntar negras e negros dentro daIgreja de Nossa Senhora da Graça para fazer zambunas com violas e palmas, o que era visto como escândalo, se bem que este ascendente do que chamamos hoje de batuque estava-se espalhando pelo arquipélago. Não é por acaso que ouvidores expediram bandos proibindo-o, inclusive em S. Nicolau e na Brava, durante a segunda metade do século XVIII.Mas a cultura da Praiaé feita também por gente que vem das outras ilhas, quer fugindo aos efeitos da seca quer atraídas pelas oportunidades do porto e mais tarde das instituições do Estado. Ainda concorre para o património desta urbe a cultura de elite de funcionários públicos e militares que chegavam de Portugal, sobretudo depois que a Praia se tornou capital da Província. Eles animavam desde os bailes no engalanado salão do Batalhão de Artilharia, nos anos 40 do século XIX, até aos serrõesno célebre Teatro Africano, onde no século XX homens como o poeta e ensaísta Pedro Cardoso realizou as suas históricas conferências, e o português Prazeres Pires, o fundador da Achadinha Pires e do Clube Os Travadores, fazia passar as suas deliciosas peças de teatro criticando as autoridades e a corrupção que reinava na Sociedade de Abastecimento de Géneros Alimentícios (SAGA), de má memória. Ou então a música no coreto da Praça Albuquerque, frente do qual os republicanos radicais (Pedro Cardoso, Abílio Macedo, José Maria Costa e tantos outros) sonharam com a vitória nas eleições de 1911.

Enfim, a cultura da Praia é feita de todos estes contributos históricos, inicialmente conflituantes entre si, mas que com o tempo se foram contaminando e integrando-se numa coisa só. É desejável que se recupere esta memória da cidade, devolvendo-a aos cidadãos sob a forma de roteiros, monumentos, museus, livros e músicas.Afinal, como disse atrás, História é riqueza, riqueza de matéria e de espírito.

 

 «Concorre para o património desta urbe a cultura de elite de funcionários públicos e militares que chegavam de Portugal, sobretudo depois que a Praia se tornou capital da Província. Eles animavam desde os bailes no engalanado salão do Batalhão de Artilharia, nos anos 40 do século XIX, até aos serrõesno célebre Teatro Africano, onde no século XX homens como o poeta e ensaísta Pedro Cardoso realizou as suas históricas conferências, e o português Prazeres Pires, o fundador da Achadinha Pires e do Clube Os Travadores, fazia passar as suas deliciosas peças de teatro criticando as autoridades e a corrupção que reinava na Sociedade de Abastecimento de Géneros Alimentícios (SAGA), de má memória»

 

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine