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Stribilin (57ª parte)
Cultura

Stribilin (57ª parte)

CCXXXIX CENA

Dário e Diana estão morados juntos, numa casinha confortável há já dois anos. A Diana está grávida em estado avançado. Dário muda de roupa e prepara-se para sair.

DÀRIO – Diana, vou sair para tratar de um assunto mas não demoro.

Diana não lhe responde, ele dirige-se à ela e dá-lhe um beijo antes de sair.

CCXL CENA

Uns escassos metros à retaguarda da casa Dário cruza-se com a Gisela, uma amiga e colega de há algum tempo.

DÁRIO – Olá Gisela, como estás tão crescida!

GISELA – Tu também. Já não estás como te conhecia. Quanto tempo?! Então, o que tens feito?

DÁRIO – Olha… acabei o curso este ano.

GISELA – Então posso fazer publicidade em como já temos um doutor na zona?

DÁRIO – Doutor não. Engenheiro… Agrónomo.

GISELA – Boa. O mesmo curso que o Amílcar Cabral tirou.

DÁRIO – Na mesma faculdade e com a mesma média. E tu, também o que tens feito durante esse tempo todo?

GISELA – Terminei o Liceu... não consegui bolsa, estou a dar aulas no Ciclo. Para o ano tenciono ir fazer o bacharelato.

DÁRIO – Bacharelato… em quê?

GISELA – Línguas e literaturas modernas.

DÁRIO – Muito bem! Boa notícia! E que mais?

GISELA – O resto dizes tu. Afinal, já és casado?

DÁRIO – Ainda não. E tu?

GISELA – Também não. Talvez estejamos a espera um pelo outro.

DÁRIO – Falta-me essa sorte.

GISELA – Eu é que não tenho a sorte de ser mulher do Sr. Engenheiro.

DÁRIU – Se nunca te mentiste… então vai agora confessar-te, por favor.

GISELA – Pareces quieto, mas afinal és brejeiro.

Ela avança-se para o cumprimentar com beijos, surge a Diana por detrás do Dário

DIANA – O que é isto, sua vagabunda, descarada? (Derruba a Gisela com uma bofetada) Erraste com o teu homem? Este é meu, sua porca, nojenta!

DÁRIO – O que é isto, Diana? Enlouqueceste ou quê?

DIANA – Tu é que enlouqueceste, que andas a enganar-me. Pacóvio.

GISELA (levanta-se estonteada) – Afinal tu és casado e vens tentar passar fim-de-semana comigo?! (Para Diana) Apesar que você me agrediu, peço-lhe desculpa. Este palerma é que provocou tudo. (Para Dário) De hoje em diante não te quero ver nem pintado de ouro. Ouviste?

DIANA (para Dário) – Diz que ela está a mentir. Diz. Diz, que eu quero ouvir. E onde é que iam passar fim-de-semana?

DÁRIO – Diana, vai para a casa e vamos conversar calmamente.

Gisela vai embora chateada.

DIANA – Onde é que iam passar fim-de-semana? Onde? Numa pensão? Em casa de Nhu Branquinho ou da Nha Fróza?

DÁRIO – Fim-de-semana é a forma de falar dela… a gíria dela. Queria dizer que estava gozar-me… a caçoar-me dela.

DIANA – Mentiroso, (atira-se a ele com violência e arranha-lhe a cara) Canalha, falso, traidor.

DÁRIO – Controla-te, Diana. Olha pela tua barriga e vês que não estás em estado de te enervares. Pensa no nosso filho que tens na barriga.

DIANA – Nosso filho?! Meu filho! Esse menino, querendo Deus, vai nascer em casa dos meus pais. E não vai levar o teu apelido por nada deste mundo.

Diana volta à casa completamente furibunda e a chorar. Chega à casa, arruma as suas coisas e volta para a casa dos pais.

CCXLI CENA

Alguns meses depois, numa festa de finalistas, Diana e Dário estão sentados à mesma mesa, lado a lado.

DÁRIO (esforçando-se muito) – Diana, os teus pais estão bons? (Diana não responde) A nossa filha… está tudo bem com ele? (Diana continua indiferente) fiz-te uma pergunta, Diana. Segundo manda a ética ou a moral, todas as perguntas merecem uma resposta. Sim, não ou talvez.

DIANA – E se não me apetece responder?

DÁRIO – Não querer responder é um direito que te assiste, mas eticamente é incorreto e é logicamente errado.

DIANA – Quem te ouve falar da ética e da lógica pode pensar que és algum eticologista…, algum perfeito!

DÁRIO – Podem pensar o que quiserem. Sei que não sou perfeito, como sei que ninguém o é. Perfeito é paradoxo! Não há ninguém que o seja. No mínimo, pode haver alguém mais imperfeito do que outro. Agora… mais perfeito?… não existe.

DIANA (olha-o fixamente) – Na tua conceção, que diferença há entre ética e lógica?

DÁRIO – São duas coisas diferentes. Ética é a moral… o “dever” de respeitar os outros e de praticar o “bem”… sem obrigatoriedade. Pois, ninguém vai preso ou é castigado por não dar esmola a um velhinho pu não dizer «Bom Dia» ao outro. Enquanto que lógica é ciência, requer exatidão nos resultados. Na lógica há só duas respostas para cada pergunta: “sim” ou “não” ou então, “verdadeiro” ou “falso”. Não admite o “talvez”. Ou é tudo, ou é nada. Não há meio-termo. Conforme se diz: Ou é 8, ou é 80. Já consigo arrancar-te a resposta à minha pergunta?

DIANA – Acho que não tens nada que saber sobre a vida da minha família.

DÁRIO – Quando é por bem, qualquer pessoa está no dever de se preocupar com outra. Demais a mais, a tua família já me diz respeito. Os teus pais são os avós da minha filha.

DIANA – Avós da tua filha?! Como se chama essa tua filha? E quem é a mãe dela?!

DÁRIO – A mãe da minha filha, que eu saiba, chama-se Diana. És tu. O nome dela, já te ia perguntar.

DIANA – Ah, é?!

DÁRIO – Não me convidaste para ir registá-la! Qual foi o nome que lhe deste? Lembras-te que – como se adivinhasse que seria uma menina – sugeri que se chamasse Kizy, nome da namorada deste meu amigo. (Bate ao de leve no ombro do Dério) Não achas fixe, Derusca?

DÉRIO – E lembrem-se de que fui convidado para padrinho. (Para Diana) Fui ou não, Comadre?

DIANA – Eu não sei.

DÁRIO – Diana, não é minha intenção obrigar-te a continuar comigo contra a tua vontade. Mas acho que deves reconsiderar, por amor à nossa filha. Quero que ela seja criada e educada por nós, os pais dela. Não quero ter outra mulher que ela considere madrasta, menos ainda que arranjes outro homem para ela chamar de padrasto. (Diana emudece-se) Queres que peça o carro emprestado ao Dério e damos uma voltinha? (Diana continua calada, Dário volta para Dério) Empresta-me a chave do teu carro?

Dário toma a chave, levanta-se, pega a Diana na mão e saem sob o olhar curioso dos convivas. Passado um bocado entra a Gisela um pouco descontrolada.

GISELA – Pessoal, muito cuidado ao beber merdon, porque o Dário já atropelou uma senhora que está no hospital entre a vida e morte.

DÉRIO – O quê?! Com o meu carro?

GISELA – Não sei com que carro. Só sei que quando vinha pra aqui, vi um Polícia, chateado, a perguntar por ele. Acho que atropelou a senhora e fugiu.

Numa onda de tristezas e comentários, a cena acaba.

CCXLII CENA

Dário está a ser julgado.

JUÍZA (para o Oficial) – Declaro aberta a audiência.

OFICIAL – Por ordem da meritíssima juíza está aberta a audiência.

JUÍZA (para o Dário) – As perguntas que lhe vão ser feitas, as respostas são obrigatórias. Percebeu?

DÁRIO – Percebi sim, Dra. Juíza.

ESCRIVÃO (para o Dário) – O seu nome?

DÁRIO – Dário Tute Simoa da Cruz.

ESCRIVÃO – Nome dos seus pais?

DÁRIO – João da Cruz de Alexandra e Helena Tute Simoa.

ESCRIVÃO – Estado civil?

DÁRIO – Unido de facto.

ESCRIVÃO – Idade?

DÁRIO – 31 anos.

ESCRIVÃO – Profissão?

DÁRIO – Engenheiro Agrónomo.

ESCRIVÃO – Nacionalidade e morada?

DÁRIO – Nacionalidade cabo-verdiana e morada em Monte Sossego, Rua 3, nº 86 – Mindelo, São Vicente.

ESCRIVÃO – Tem filhos ou não?

DÁRIO – Uma filha bebé.

O Escrivão olha para a Juíza e faz sinal com a cabeça.

JUÍZA – Sr. Dário Tute Simoa da Cruz, as perguntas que acabou de responder eram obrigatórias. A partir de agora só responde se quiser. Mas, se responder poderá ser-lhe útil como também será útil para este tribunal. Por isso, o senhor Dário quer contar perante este tribunal o que aconteceu na noite do dia 1 de Abril do ano passado?

DÁRIO – Quero contar.

JUÍZA – Então… tenha a bondade.

DÁRIO – Ia a conduzir o carro do meu amigo Dério, das imediações do Liceu Velho à Matiota, acompanhado da Diana, mãe da minha filha. Quando circulava na Avenida Marginal, frente à Rádio Voz de S. Vicente, a Srª. Ruth atravessou de repente a Avenida, não pude travar e ela foi embater contra o carro.

JUÍZA – Depois de a ter atropelado o que fez com ela?

DÁRIO – Levei-a às Urgências do Hospital Baptista de Sousa.

JUÍZA – Quando chegou às urgências, o que é que aconteceu?

DÁRIO – Estava lá um Agente da Polícia que me identificou.

JUÍZA – O Agente não lhe deu voz de prisão?

DÁRIO – Não. Apenas me identificou.

JUÍZA (para o Escrivão) – Perguntado, o Arguido respondeu que: «No dia da ocorrência, conduzia o carro do seu amigo Dério, acompanhado da Srª. Diana Teixeira, mãe de sua filha, das imediações do liceu velho para Matiota. Que em plena Avenida Marginal, defronte à Rádio Voz de São Vicente, atropelou a vítima, D. Ruth Lally, que ia a atravessar a via, em direção da Rádio para o litoral». (A Defesa levanta a mão à Juíza) Sim!

DEFESA – Meritíssima, por considerar a transcrição deliberadamente indiciador, protesto e requeiro a retificação da ata.

JUÍZA – O que é que a Defesa considera que merece ser retificado?

DEFESA – «Atropelou a vítima». Não foi isso que aconteceu e nem o que o meu constituinte disse.

JUÍZA – E o que sugere o Doutor?

DEFESA – Que fique na ata que foi a vítima que lhe embateu no carro.

JUÍZA – Protesto deferido. (Para Escrivão) «Defronte à Rádio Voz de São Vicente… a vítima embateu-lhe contra o carro. Que a socorreu às urgências onde foi identificado por um agente da Polícia que ali se encontrava de piquete». (Para a Defesa) Satisfaz a Defesa? (A defesa abana a cabeça positivamente) Acusação não tem perguntas a fazer?

ACUSAÇÃO – Antes do acidente o arguido estava numa festa?!

DÁRIO – Sim, Sr. Doutor. Na festa de finalistas do liceu.

ACUSAÇÃO – Não ingeriu nenhum cálice de aguardente ou uma cerveja?

DÁRIO – Não uso bebidas alcoólicas. Nunca usei.

ACUSAÇÃO – Tem carta de condução?

DÁRIO – Tenho. De ligeiros.

ACUSAÇÃO – Recorde-se a que velocidade é que ia?

DÁRIO – Entre trinta a quarenta quilómetros por hora. Não mais.

ACUSAÇÃO – Não sabe precisar ao certo? Se trinta ou quarenta?

DÁRIO – Isso não. Só sei que ia devagar. Ia até a conversar com a Diana que estava ao meu lado.

JUÍZA (para Escrivão) – Instado pela Acusação, a vítima respondeu que: «Antes do acidente se encontrava numa festa. Que nunca usou bebidas alcoólicas. Que é detentor de uma carta de condução de ligeiros. Que não sabe precisar ao certo a velocidade em que circulava, mas que oscilava entre 30 e 40 km a hora». A Defesa não tem nada a opor-se? (A Defesa diz que não com a cabeça) Sr. Oficial, chame a vítima e mande-a entrar.

OFICIAL (com um dossier na mão) – Srª Ruth Laly Lima Leite.

RUTH – Presente!

OFICIAL – Faça o favor de ir sentar-se naquele banco ali a frente.

JUÍZA (para Escrivão) – Identifique a vítima.

ESCRIVÃO (para a vítima) – Como é o nome da senhora?

RUTH – Ruth Lally Lima Leite.

ESCRIVÃO – Nome do seu pai e da sua mãe?

RUTH – Domingos Silva Gomes Leite e Filomena Lopes Lima.

ESCRIVÃO – Onde é que a Senhora nasceu?

RUTH – A minha mãe pariu-me na Praia, mas ela era da ilha do Maio. Trouxe-me ainda mocinha para S. Vicente e nunca mais tirei daqui os pés.

ESCRIVÃO – Quantos anos tem a senhora?

RUTH – O meu pai disse que nasci no fim da fome. Que quando ele foi para Sul a minha mãe carregava-me ainda nos braços.

ESCRIVÃO – Quer dizer que a senhora nasceu em 1947… 48! Tem filhos?

RUTH – Tenho 13 filhos.

ESCRIVÃO – O que é que a senhora faz?

RUTH – Com os meus 13 filhos? Eh! Deus é que ajuda. Ele é pai, ele é que dá pão.

ESCRIVÃO – Perguntei qual é o trabalho que a senhora faz?

RUTH – Sou criada na Casa Grande. Carrego água, piso milho, cozinho, varro a casa, lavo e passo a roupa, mudo fraldas aos meninos…

ESCRIVÃO – Estado civil da senhora.

RUTH – O quê?

ESCRIVÃO – O seu Estado.

RUTH – Cabo Verde.

ESCRIVÃO – Perguntei se a senhora é solteira ou casada?

RUTH – Sou separada do meu marido. Ele disse que lhe punha os cornos… deixei-o.

ESCRIVÃO – Onde é que a senhora mora?

RUTH – Moro na Rua dos Desprezados, Barraca nº 5, Bairro dos Sem Nada, Campinho – São Vicente.

JUÍZA – Quantos filhos menores é que a senhora tem?

RUTH – Quando tive o meu primeiro filho, não tinha completado 17 anos.

JUÍZA – Perguntei quantos filhos menores é que a senhora tem.

RUTH – O meu codé tem 2 anos. O que nasceu antes dele tem 9, porque o meu marido estava embarcado no estrangeiro. Tenho um com 11, outro com 12, outro com 14, outro que vai fazer 16, um que foi chamado para a tropa este ano...

JUÍZA – Chega. Tem então seis filhos menores?

RUTH – (conta pelos dedos) Marcolino, Maria Josefa, Xipirota, Crispim, Maria Balantina e Santinho.

JUÍZA – Lembra-se daquela noite em que foi atropelada?

RUTH – Lembro, sim, senhora.

JUÍZA – Então conte perante este Tribunal o que se passou.

RUTH – Vinha do Chã de Alecrim, juntamente com o meu amigo Turrino. Quando estava a frente da Rádio Voz de S. Vicente, ouvi o ronco de um carro e pensei que fosse do autocarro que passava por Campinho. Como estava em cima da hora e era o último autocarro da minha zona, corri para o apanhar, Quando verifiquei que o ronco não era do autocarro, já era tarde.

JUÍZA – A senhora reparou se o carro vinha em alta velocidade?

RUTH – Vinha mais ou menos!

JUÍZA – O condutor não podia travar, evitando que a atropelasse?

RUTH – Srª. Drª Juíza, aquilo aconteceu muito rápido. Eu acho que tenho culpa porque atravessei a Avenida a correr e sem olhar bem para os lados.

JUÍZA – O arguido alguma vez foi visitá-la depois do acidente?

RUTH – Ele foi uma vez, mas o pai dele visitou-me várias vezes. Dava-me sempre alguma esmola e disse que me ajudava.

JUÍZA – (para escrivão) A vítima declarou que «na noite do acidente, ela vinha da localidade de Chã de Alecrim, na companhia de um amigo. Que ao ouvir o ronco de um carro, convencida que fosse do autocarro que fazia carreira via Campinho, tentou atravessar a Avenida a correr e foi atropelada pela viatura em que o arguido conduzia. Que o arguido foi uma vez visitá-la e o pai foi várias vezes, deu lhe dinheiro e prometeu ajudá-la». (Para defesa) Não há protestos a fazer?

DEFESA – Há, sim, meritíssima. Requeiro a transcrição exata da resposta da vítima quanto a velocidade em que o meu constituinte circulava. E que a vítima confessou-se culpada do acidente.

JUÍZA – Defiro a primeira parte do requerimento e indefiro a segunda por considerar de pouca relevância para o processo.

DEFESA – Meritíssima, o nosso ordenamento jurídico permite a que um queixoso retire a queixa a qualquer momento, mesmo durante o julgamento. Por isso, não considero irrelevante o meu protesto, porque se a vítima considerar-se culpada, é igual ao querer retratar-se e retirar a queixa.

JUÍZA – Lembre-se de que estamos perante um crime público. Não foi a vítima que apresentou queixa e nem será ela a retirá-la. (para Escrivão) «Disse que o condutor circulava a uma velocidade mais ou menos». (Para acusação) A Acusação tem alguma perguntas a fazer?

ACUSAÇÃO – A Srª conhecia o rapaz que a atropelou?

RUTH – Quando ele nasceu, eu era criada da casa de um tio do pai dele. Ele era um menino muito meu amigo. Só depois da morte da sua mãe, que o seu pai foi morar com outra mulher, com a D. Berta, ela não gostava de mim… porque eu era muito amiga da mãe do menino… da Helena, ela então estorvou o menino de tomar-me bênção.

A Acusação dá por satisfeito e faz sinal com a cabeça à Juíza.

JUÍZA – (para Escrivão) «Inquirida pela Acusação, a vítima diz ser amiga da família do arguido e que em tempos foi empregada da casa de um tio do pai do Arguido». (Para Oficial) Mande retirar a vítima e chame a testemunha Dério Dias Martins.

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Redação