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STRIBILIN (20ª Parte)
Cultura

STRIBILIN (20ª Parte)

CVI CENA

Bia, Paulito e Denílson estão sentados à mesa a tomar o pequeno-almoço.

PAULITO – Denílson, como tens passado esse tempo todo?

DENÍLSON – Complicado, papá. Sem um trabalho em condições, a chuva não cai para a gente fazer azágua… estamos condenados a ficar parados a pensar nas coisas da vida.

PAULITO – Tens procurado trabalho?

DENÍLSON – Sempre. Estou mesmo farto de procurar.

BIA – Este menino é muito ajuizado. O que em Punoi faltava, nele há de sobra.

PAULITO – Punoi não podia ter vida longa. Todo mundo falava daquele rapazinho… infelizmente, sempre por maus motivos.

BIA – Mas o Denílson não. Com muita dificuldade, mas ele conseguiu fazer o seu segundo ano do Ciclo Preparatório com boas notas.

PAULITO – Isso foi uma grande vitória. (Olha para Denílson) Fiquei contente por isso e muito orgulhoso de ti.

DENÍLSON – Muito obrigado.

PAULITO – Agora, se Deus quiser, vou trabalhar e ajudo-te a continuar os estudos. Vou ajudar-te a tirar o 5º ano, ficas assim mais perto de conseguir um emprego.

DENÍLSON – Meti os papéis para trabalhar como professor, não me chamaram; dei nome para entrar na Polícia, também não me chamaram.

PAULITO – E não te disseram porquê?

DENÍLSON – Desconfio que talvez fosse por não ser miliciano… por não pertencer a nenhuma estrutura do Partido.

PAULITO – Porquê?

DENÍLSON – Pedem-me sempre uma declaração do 1º Secretário de Base do Partido, que me dá uma carta fechada para entregar. Simplesmente, nunca me chamaram.

PAULITO – Mas por que é que pensaste que pudesse ter sido isso? Pode ter sido por outros motivos.

DENÍLSON – Talvez!… Mas os meus colegas que eram milícias, que são filhos de membros da Comissão de Zona ou do Juiz do Tribunal Popular, que foram Pioneiros, membros da Juventude ou da Organização das Mulheres, foram admitidos na Polícia, alguns, mesmo sem que tivessem a quarta classe.

PAULITO – Se de facto é assim… tens toda a razão. Quando eu acabar de tomar o pequeno-almoço vou a Secretariado pedir trabalho.

DENÍLSON – Pode ser que o pai tenha mais sorte do que eu.

PAULITO – Preciso de trabalho. Tenho que trabalhar para refazer a minha vida e recuperar os 15 anos que passei desgraçadamente nos calabouços.

BIA – E nós, para nos aguentarmos vivos até hoje, passamos vários vitupérios.

PAULITO – Eu imagino.

BIA – Comemos o pão que o Diabo amassou. Aqueles dois polícias que te foram prender, Dicarião e Girino, sempre que vêm Denílson, insultam-no. Chamam-lhe de bandido, delinquente e raça de bandido. Felizmente Denílson é calmo, não lhes responde.

PAULITO (levanta da mesa e ajeita a camisa dentro das calças) – Vou ao Secretariado ver o que é que aquelas gentes me dirão. Se me arranjam ou não trabalho. Quando me despachar passo pela casa da Alcinda para ver como é que ela está. Se alguém me vier visitar, diz-lhes que não demoro.

Sai

CVII CENA

Paulito e Alcinda estão sentados num banco tosco, numa pequena e humilde sala, limpa, bem arejada e iluminada pela luz natural. Conversam-se.

PAULITO – Novidades da Mónica, Alcinda?!

ALCINDA (emociona antes de responder) – Espero que esteja viva e de saúde! Tenho tantas saudades da minha filha!

PAULITO – Luluxa não nos devia ter feito isso. Confiamos nela, demos-lhe a nossa filha para levar, pelo menos nos tivesse dado, de vez em quando notícia.

ALCINDA – Tenho fé que ainda um dia vou abraçar a minha filha. Peço a Deus todos os dias e com muita fé.

PAULITO – Que idade ela já deve ter agora?

ALCINDA – Quando a Luluxa a levou ela ainda não tinha completado 3 anos. E tu já tinhas estado preso há um ano e tal.

PAULITO – Ela deve ter agora uns 17 anos por aí!

ALCINDA – É por aí.

PAULITO – E o Titino?

ALCINDA – Ele está bem. Vive-se desenrascando, vendendo os balaios que faz.

PAULITO – Ele foi sempre, desde menino, muito jeitoso nesses trabalhos de artesanato. Tanto em carriço, chifre, folhas de tamareira ou em casca de coco.

ALCINDA – E hoje lhe está a dar a sua cachupa. Todas as segundas-feiras ele vai vendê-los no Pelourinho dos Órgãos; às quartas e Sábados ele vai à feira de Nha Santa Catarina. E graças a Deus ele tem boa mulher e 4 filhos lindos.

PAULITO – Lá isso é verdade! Ele tem uma santa mulher… filha de boa gente.

ALCINDA – Ainda não devem ter dado conta que já saíste. Senão já te tinham visitado. Nós já sabíamos que estavas quase a sair, mas não imaginávamos que pudesse ser ontem. Por isso é que ele e a mulher e os filhos não te foram cumprimentar ainda.

PAULITO – Vou lá hoje a tarde. Preciso mesmo de lá ir, para ver se ele me empresta uma enxada. Amanhã vou atrás de algum trabalho nas hortas lá pela Jaracunda, Zimbrão ou Makatí. Vou ver se Nezinho Lelenxo, José ou Agostinho Cardoso, ou mesmo Nhu Penha Cardoso de Nha Bombena me arranjam algum trabalho na lavoura.

ALCINDA – Esse Delegado do Governo não tem sangue nos olhos! Não te arranja trabalho por maldade. Ele pensa que só ele é que tem direito de comer. Gardion!

PAULITO – O Delegado nem me recebeu. Mandou-me falar com o Secretário.

ALCINDA – Esse aí então… ainda é pior!

PAULITO – Achei-o diferente. Dentro de fato e gravata, com sapatos nos pés, óculos escuros nos olhos… não, sim senhor!

ALCINDA – Esqueceu-se de quando fandatava rabo de peixe em Rubon Baleia para levar a mãe e os mil irmãos que tem!

PAULITO – Ele não devia esquecer-se de como levava a porca da vida! Com nariz atolado de ranho, boqueira nos cantos da boca e bichinho nos pés!

ALCINDA – As pessoas ficam finas depressa! Ele hoje, até para ele ir kobon vai de carro.

PAULITO – Já comprou carro?

ALCINDA – Qual comprar carro! O carro é do Estado.

PAULITO – O mundo dá voltas, Alcinda!

ALCINDA – O mundo pode dar voltas que der, mas vem parar no mesmo sítio. Nha Násia Gomi já dizia: «Sima nu kre nu ka pode sta, mas sima nu sta nu ka pode fika. E é verdade. «Kada katxor ten se sésta-fera».

PAULITO – É mesmo verdade. Deus é que dá pão. Criaturas têm mais é atrevimento. Não te preocupes. (Levanta-se e prepara para sair) Agora deixa-me ir, por que deve estar muita gente lá na Bia à espera para me ver.

ALCINDA – Vai na paz de Deus.

PAULITO – Fica bem. Ainda nem fui na Beba, para saber também da novidade do Joaquim.

ALCINDA – Encontrei-me com ela anteontem, ela estava a vir de Areia Grande, de onde tinha ido ajudar os pescadores a puxar as redes. Ela disse-me que também não tem notícias do Joaquim.

Paulito sai calado e cabisbaixo.

CVIII CENA

Muita gente em casa da Bia à espero do Paulito que entra e os cumprimenta.

BIA – O que te disseram no Secretariado? Arranjaram-te trabalho?

PAULITO – Não. O Delegado do Governo mandou-me falar com o Secretário e este disse-me que tenho que esperar, porque saí ontem de Cadeia, tenho cadastro sujo. Que por enquanto não me pode arranjar nenhum trabalho.

BIA – E como é que vais viver?! Chefe de família sem direito de trabalhar?! Isto é abuso.

FORÇUDO – Eles pensam que a terra é só deles. Que só eles é que têm direito a mamar!

DJUCRUCO – Bia, conheço um rapaz que passou alguns anos na cadeia, quando saiu, embora tivesse 5º ano do Liceu, não conseguiu trabalho por causa do seu Registo Criminal. Um tio lhe ofereceu um camião para trabalhar por conta própria, mas ele tinha a carta de condução de ligeiros, quando foi tentar passar para pesados, o serviço de Viação prendeu-lhe a de ligeiros, mandou uma nota para todos os Postos de Polícia para que o autuassem se o apanhassem a conduzir. Como aqui nesta nossa terra, o único patrão é o Estado, esse rapaz ficou desesperado, até que conseguiu ir para Portugal. Dizem que está quase a acabar o seu curso de Advogado.

FORÇUDO – Não devia ser. Devia ser antes pelo contrário. Uma pessoa depois de cumprir a sua pena devia ser permitido e apoiado para fazer a sua vida como deve ser. Deveria ser a primeira a ter apoio para conseguir um trabalho, para recuperar a vida perdida e não voltar a fazer o mesmo que, possivelmente lhe terá levado à Cadeia. Mas, infelizmente, quem faz as Leis, só necessita delas para tirar proveitos, para abusar dos mais fracos. As Leis são feitas pelos mais fortes para se divertirem ao ver os mais fracos a cumpri-las, estes com lágrimas no canto do olho, eles com sorriso no canto da boca.

BEBA (chega e entra em pânico) – Oh mundo… Oh meu filho… Paulito… Paulito!

Todo o mundo fica espantado.

BIA – O que foi, Beba? O que é que aconteceu?

BEBA – Ah, meu filho! Onde está o Denílson? Ele e o Paulito. Que afronta, meu Deus!

PAULITO – Beba, estou aqui, eu e Denílson! É o quê? Ainda não fui à tua casa porque não tive tempo, mas vou lá daqui há pouco.

BEBA – Minha gente, não sabem o que estão por aí a dizer? Não ouviram?

TODOS – O que é que estão a dizer?!

FORÇUDO – Nós não ouvimos nada!

BEBA – Ah, que afronta… que tristeza! Xia, minha gente! Xia foi encontrada morta dentro de casa…

BIA – O quê?!

BEBA – E todo o mundo está a dizer que foi Paulito que saiu de Cadeia ontem que a matou.

FORÇUDO – Paulito?! Que ganda mentira!

BEBA – Que foi ele e o Denílson, porque Denílson já tinha dito que quando fosse grande a matava porque ela pôs-lhe o pai na Cadeia.

PAULITO (com olhos esbugalhados) – Eu?! Estão doidos ou têm o quê na cabeça?

BIA – Não te apoquentes, Paulito. Nós somos a tua testemunha.

PAULITO – Eu já não vejo aquela estupora com os meus olhos há mais de 15 anos!

Chegam dois Polícias. Dicarião e Girino.

DICARIÃO – Boa tarde. (Toda a gente responde) Paulito, Chefe mandou-nos buscar-te, tu e Denílson, para irem prestar uma declaração e voltam já.

PAULITO – Eu já sei de tudo o que se está a passar. Já sei o que é que vocês querem tramar contra mim.

GIRINO – Se já sabes… então ainda bem. Assim já não nos dá ao trabalho de arrancar-te a verdade debaixo das unhas com um alicate. Muito obrigado.

PAULITO – Mas a Bia é minha testemunha. Dormi cá em casa, de manhã fui ao Secretariado procurar trabalho, passei pela casa da Alcinda, minha mãe de filhos e regressei diretamente pra aqui outra vez.

GIRINO – Isso não te perguntamos e nem precisamos saber. Passa à frente e vamos, quando chegares lá no Posto contas tudo ao Chefe.

Quase todo o mundo fica a chorar e a lamentar.

DJUCRUCO – Girino, não precisas falar com o homem dessa maneira. Lembra-te que se não fosse aquela puta da farda que tens vestido, e essa porcaria de pistola que trazes no coldre, não falavas desta maneira com ninguém. Ao menos respeita essa farda que tens no corpo, comprado com o dinheiro da cabeça que pagamos.

GIRINO (de pistola em punho, dá ao Djucruco uma bofetada. Dicarião puxa cassetete e bate-lhe também) – Quem és tu para me chamar a atenção? Vá, passa à frente e acompanha comigo. Quando chegarmos no Posto da Esquadra eu trato-te de saúde. Bardamerda.

Levam Paulito, Denílson e Djucruco para o Posto numa confusão total.

CIX CENA

Paulito e Denílson entram algemados pelo portão da Cadeia. Os Guardas gozam-lhes.

RUI (admirado) – Paulito?! Não foi ontem que tu saíste daqui?

MARCOLINO – Ele não saiu. Foi de licença para ir buscar o puto. (Dá uma gargalhada) Ou não Paulito?

PAULITO (transtornado) – Eu não fiz nada.

RUI – Aqui ninguém fez nada. São todos inocentes. Coitadinhos. São todos uns anjinhos injustiçados. O Juiz é que é bandido.

MARCOLINO (para Denílson) – Como é, puto? Não és bravo como o teu pai? (Denílson não lhe responde) Estou a falar contigo, pirralho! (Dá-lhe uma tapona valente) Pensas que aqui é lá fora que tu é que ordenas o silêncio?! Aqui não! Aqui tens que estar com o rabinho entre as pernas. Entendeste?

RUI – O gajo tem jeito de malcriado. Parece desaforado!

MARCOLINO (Pega o puto por um braço) – Vá! Vem pra qui. (Leva-o aos empurrões) Vai lá pra cela disciplinar conhecer o que é bom pra tosse. Bandido!

Paulito fica a chorar enquanto Denílson é levado para cela disciplinar aos empurrões, murros e pontapés.

CXII CENA

Geraldina vai visitar a sua comadre Bia. Estão sentados na sala.

GIRALDINA – Porque é que transferiram compadre e meu afilhado para São Vicente, comadre?

BIA – Da mesma forma que foram presos sem terem feito nada.

GIRALDINA – Mas por que é que foram transferidos?

BIA – A comadre sabe que Denílson gosta de fazer ginástica. Ele não bebe, não fuma, não tem nenhum vício.

GIRALDINA – Não é por que é meu afilhado. Ele é um santo menino.

BIA – O guarda Rui, aquele aldrabão que anda armado em garanhão, como não admiti as patifarias dele, foi vingar no Paulito e no meu filho.

GIRALDINA – E porquê?

BIA – Ele estava a fazer a sua ginástica, o guarda Rui mandou-lhe parar, perguntou-lhe se estava a encher o peito para meter medo aos Guardas, ele respondeu-lhe que, se quisesse também encher o peito para treinar como ele.

GIRALDINA – So por isso?

BIA – Só. O Rui achou que lhe estava a ofender, foi dizer ao Diretor que, injustamente, mandou os dois para São Vicente, longe de família.

GIRALDINA – Coitado do Denílson! Tão jovem… acusado e fechado na Cadeia por uma coisa que não fez! Por um crime que não cometeu!

BIA – Deus é testemunha disso, comadre. Alguém que matou a Xia deve estar a matar todos os dias, Paulito e o meu filho a pagarem injustamente.

GIRALDINA – A Xia até pagou pelo que fez.

BIA – Mas podiam tê-lo feito antes que o Paulito saísse de Cadeia. Assim não o incriminavam.

GIRALDINA – Quem fez isso, fê-lo devidamente programado.

BIA – Foi tiro certeiro. O alvo era Paulito e foi tiro e queda.

GIRALDINA – Mas Deus tem. Justiça divina pode demorar mas não falha.

BIA – Tenho fé que um dia tudo há-de vir às claras.

Giraldina fica, de repente, muito pensativa, triste e cabisbaixo.

BIA – Comadre Giraldina está com essa cara, assim de repente porquê?!

GIRALDINA – Já nem me recordo quando é que tive um sorriso no meu rosto, comadre Bia.

BIA – Porquê, comadre? Isso você deve deixar para mim. Você tem casa, vive com o seu marido, ao lado dos seus filhos!…

GIRALDINA – Isto era uma vez, comadre Bia.

BIA – O compadre não se está a portar bem? Tem bebido muito?

GIRALDINA – Oh, comadre Bia… com a bebida dele já me acostumei. Ele só bebe aos fins-de-semana ou quando está de folga do trabalho. Não me incomoda. Excepto o bafo a carne de bode não castrado… e o ressonar, que às vezes me escorraçam o sono.

BIA – Então o que se passa? Não me diga que compadre Virgulino arranjou uma amante… já lhe arranjou uma comborça?!

GIRALDINA – Se ele arranjou uma amante… isso ainda não sei.

BIA – O Badoku continua metido em algo errado?

GIRALDINA – Badoku já não tem cura. Punoi já está descansado, mas Badoku ainda continua a meter medo a todo o mundo. E é menor… não lhe podem pôr na Cadeia.

BIA – Peço-lhe desculpa, comadre. Badoku aprendeu tudo isso com Punoi. Eram amigos e andavam sempre junto.

GIRALDINA – É que demorei demasiado tempo para perceber que ele andava nessa vida. Podia ter desconfiado quando o vi chorar daquela maneira no funeral do Punoi.

BIA – Peço desculpa.

GIRALDINA – Mas não é por isso que estou assim triste.

BIA – Então porquê?

GIRALDINA – Comadre, eu não sei o que é que se passa na cabeça do Virgulino, de há uns tempos para cá. Há já mais de dois meses que ele não me dá nem um centavo para a casa. E vai todos os dias para o trabalho. Pelo menos daqui de casa ele sai todos os dias.

BIA (faz sinal da cruz) – Ave-maria! Creio em cruz, meu Deus do Céu! O compadre que parecia tão dedicado à família?! Você não lhe perguntou por que é que ele não dá dinheiro para casa?

GIRALDINA – Só lhe falar em dinheiro ele briga-se e ameaça bater-me se não me calar.

BIA – Alguma coisa se está a passar, comadre Giraldina.

GIRALDINA – Minha comadre… acho que isto nem Deus sabe.

BIA – Você não procurou saber num curandeiro? Olhe que o mundo hoje-em-dia não está limpo. As criaturas estão maldosas, têm vontade de transtornar as pessoas.

GIRALDINA – Fui à casa do Talvino em Tira Chapéu, mas ele cobrou-me muito caro.

BIA – Eu conheço um em Achadinha… minha comadre!… O homem entende!

GIRALDINA – Não é aquele – que dizem – que trabalha com espíritos?

BIA – Sete espíritos encarnam no corpo dele. Minha comadre… ele conta-lhe tudo o que se está a passar à sua volta.

GIRALDINA – Então a comadre tem que levar-me lá para eu ir saber o que é que o seu compadre tem.

BIA – Quando a comadre quiser… basta dizer-me. Descemos do carro no caminho que vai para Achadinha, subimos aquela rampazinha ao lado da Igreja “Deus é Amor” viramos à direita, damos uns dois passos, entramos num beco e é aí. Podemos chegar e bater ao portão.

GIRALDINA – Vou então preparar-me, quando estiver pronta, digo-lhe.

BIA – Não há problema. Marque só o dia… e diga-me.

GIRALDINA – Muito obrigada. Como é que ele se chama?

BIA – Chama-se Carlitinhos. Ele assopra numa garrafa, os espíritos entram nele e ele fica a falar só língua estrangeira.

GIRALDINA – É esse mesmo. E dizem que ele não sabe ler nem escrever!

BIA – Mas quando tem os finados no corpo dele, escreve, lê e fala um monte de línguas. Ah!… Tem um finado que quando entra nele, bebe uma caixa de cervejas sozinho e fuma sete cigarros ao mesmo tempo.

GIRALDINA – Você não sente medo?

BIA – Eu não sinto medo. (Faz o sinal da cruz) Não lhes devo nada!

GIRALDINA – Mas você tem a certeza que ele consegue pôr Virgulino na linha?

BIA – Como dois e dois são quatro.

GIRALDINA – Olhe que andam muitos charlatões por aí. Fingem que sabem alguma coisa, entretanto não tem dado resultado.

BIA – Mas o Carlitinhos não é charlatão. Garanto-lhe. Se você for à casa dele e o compadre não “tomar o tom… tom há de lhe tomar”.

GIRALDINA – Comadre, essas duas palavras juntas não se devem dizer. Tornam-se palavrões.

BIA – “Tom, tom?” (Dão umas gargalhadas) Houve uma altura em que uma das minhas comborças queria roubar-me o Paulito…

GIRALDINA – Uma das suas comborças?!

BIA – Mas, comadre!… fui à casa desse Carlitinhos, ele encarnou um espírito que se chama Mulatinho Preta de Achada Grande… mulher!… O espírito bebeu um litro de aguardente, comeu uma caneca cheia de malagueta e começou a falar pela sua boca.

GIRALDINA – Uma caneca cheia de malagueta?!

BIA – E bebeu ainda um litro de aguardente por cima.

GIRALDINA – Sozinho? Jesus-maria!…

BIA – Só os espíritos o fazem!

GIRALDINA – Esses não são espíritos. São demónios.

BIA – Comadre, ele deitou as cartas, mostrou-me aquela messalina… vi-a com estes meus dois olhos, com a cara plantada no meu marido.

GIRALDINA – Viu mesma, comadre?

BIA – Com estes meus olhos. Preta como “kanpetxi”… cabelo crespo, com aqueles olhos enormes a olhar para o meu Paulito, comadre.

JIRALDINA – Mas… o compadre largou-a da mão? Não ficou morado com ela?

BIA – Não! Quando lhe preparei o remédio que Carlitinhos me ensinou, o maltrapilho ficou a engodar-me. Comprou um par de brincos show de bola e pôs-me nas orelhas; ofereceu-me uma saia gaita-gaita que custou 17 contos.

GIRALDINA – Comadre, quer dizer então que o homem sabe mesmo!

BIA – A comadre duvida do que lhe estou a dizer? Eu vi com estes meus dois olhos. Carlitinhos sabe, sim senhora.

GIRALDINA – Amanhã então eu vou lá. Se você não tiver tempo para me acompanhar, como já me indicou onde é que é, vou sozinha.

BIA – Eu vou consigo. Também preciso de lá ir.

GIRALDINA – Então vamos amanhã bem cedo.

BIA – Se Deus quiser.

GIRALDINA – E o preço? Ele não é muito careiro?

BIA – Depende do que a comadre quer que ele lhe faça.

GIRALDINA – Do que eu quiser que ele me faça? Como assim?

BIA – Só para deitar as cartas ele cobra dois contos e quinhentos.

GIRALDINA – E para pôr o Virgulino na direção certa?

BIA – Para isso, você paga-lhe quinze contos, dá-lhe uma mascote em ouro maciço e duas galinhas pretas. Se quiser que ele faça com que a rival morra…, caso o compadre tenha amante, ele cobra-lhe cem contos.

GIRALDINA – Matar não. Isso é pecado muito grande. Só Deus tem o direito de matar.

BIA – O que ele anda a fazer-lhe também não é pecado?

GIRALDINA – Mas Deus disse para atirarmos água a quem nos põe lume.

BIA – Isto é só blablá. A mim, se alguém me pôs lume, dou-lhe com água, sim, mas gelada, se for no Inverno.

GIRALDINA – Matar não. Para isso não tenho coragem. Ele não sabe fazer outra coisa, senão matar?

BIA – Pode transtorná-la… se quiser.

GIRALDINA – Isso ainda vá lá. Mas…

BIA – Se quiser ainda que ele faça com que homem nenhum olhe mais para ela…

GIRALDINA – É isso que eu quero. Que nenhum homem a veja com os seus olhos. Ficará titia e aprenderá o que é roubar marido de outrem!

BIA – Para isso você paga-lhe 33 contos e 4 tostões. E leva-lhe um bode capado, um boronsete gordo, uma porca de boa raça, duas galinhas e um cordão de ouro maciço.

GIRALDINA – Só os trinta e três contos é que me faltam. Bode capado eu tenho, os porcos também eu tenho. Cordão de ouro tenho um que a minha madrinha de casamento me pôs no pescoço quando casei.

BIA – Mas é isso que ele cobra. Trinta e três contos e quatro tostões. Mas também você verá resultados. Os quatro tostões são para ele mandar pôr no cesto do peditório durante a missa ao domingo.

GIRALDINA – Ainda se ele não pedisse cordão e alimárias… eu vendia-os e pagava-lhe.

BIA – Também tem que levar umas peças de roupa íntima. A sua e a do compadre. Preferencialmente, as que estejam sujas.

GIRALDINA – E que tipo de roupa, comadre?

BIA – Roupa íntima é aquela que faz contacto diretamente com o nosso corpo. Como calcinha, soutien, ceroulas, peúgas, etc. (Para um pouco e medita) Sabe uma coisa?

GIRALDINA O quê?

BIA – Mas… não vale a pena. Você não terá coragem.

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Redação