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A Revolução em Marcha
Ponto de Vista

A Revolução em Marcha

Chegava da Universidade depois de um dia estafante.

Disse-me ele assim de chofre, estás bem da vida, com dois vencimentos, um de antigo Primeiro Ministro e outro de Professor Universitário, não tens problemas, vale sempre a pena!

Esbocei um sorriso para dizer-lhe que, em Cabo Verde, os antigos Chefes do Governo não têm estatuto. Segundo o Estatuto Remuneratório dos Titulares de Cargos Políticos, têm direito a um subsídio correspondente a 75% do vencimento do Presidente da República, que não pode ser acumulado com outras remunerações, exceptuando as dos cargos eletivos. Ou seja, pode um antigo PM acumular o subsidio com o vencimento de um Deputado ou de um Presidente de Câmara, mas não pode acumulá-lo com o de um professor ou de um técnico superior da Administração Pública.

Adianto-me para esclarecer que não faço aqui nenhum juízo de valor, apenas constato um facto.

Como é sabido não quis exercer nenhum cargo político após deixar o Governo. A minha intenção sempre foi regressar à “vida civil”.

Quando deixei o cargo de Primeiro Ministro fui fazer um programa de doutoramento em Lisboa, pedi o subsídio, porque não dispunha de outro rendimento. Logo que regressei ao país, apresentei-me na Universidade de Cabo Verde, meu quadro de origem, onde comecei a dar aulas na Escola de Negócios e Governação (ENG), e pedi, imediatamente, a suspensão do referido subsídio. De modo que, neste momento, o único vencimento que tenho é o de Professor Universitário, como todos os meus colegas de trabalho.

Não reclamo, apenas esclareço para evitar dúvidas e confusões.

Esse regresso à sociedade civil tem-me feito muito bem. Às vezes , quando estamos no poder, escapam-nos alguns detalhes do quotidiano da vida dos cidadãos e da sociedade. Temos protocolo, as nossas visitas são preparadas, muitas das contestações e reivindicações chegam filtradas até nós. Desde que saí do Governo, levo a minha filha à escola, ao Centro de Saúde ou ao Banco de Urgência, vou às repartições públicas, aos cafés e aos supermercados, falo com estudantes nas salas de aulas, oiço as suas contestações e reivindicações nos corredores da Universidade, constato nas ruas, de forma nua e crua, porque sem quaisquer filtros, o modo como as pessoas vivem, contestam, falam dos políticos e dos governos.

Estes três anos de vida “à paisana” têm sido fabulosos para mim. Tempos de reavaliação da política e da governação; tempos de estudos e de reflexão crítica. Todos os políticos deviam ter essa “carreira quebrada”, uns tempos no poder, outros na oposição e outros na sociedade civil. Fosse assim, aprenderíamos todos a relativizar o exercício do poder em democracia, a escutar mais e melhor a oposição, os cidadãos e a sociedade civil, a ponderar melhor determinadas políticas públicas e a cuidar melhor do património público; a ser mais humildes, mais tolerantes e mais argutos.

É claro que a difusão do poder, como escreveu Joseph S. Nye, e o avanço do individualismo (Tzvetan Todorov fala da “tirania dos indivíduos”, em Os Inimigos Íntimos da Democracia), têm resultado em crise do Estado e da Democracia. Os políticos e os governos têm de aprender a lidar como fenómenos sociais e políticos absolutamente subversivos. As manifestações em Hong Kong, Chile, Bolívia, França, Líbano ..., o Brexit, a eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro ... , a crise dos partidos políticos moderados tradicionais de direita e de esquerda, a excessiva segmentação do campo político e o entrincheiramento das forças políticas são apenas sintomas das novas realidades políticas emergentes. As respostas do passado já não são válidas. Para os novos tempos, todos os dias temos que criar novas respostas. Tornam-se, pois, urgentes novas aprendizagens e criação de novos canais e mecanismos, flexíveis e inovadores, de relacionamento com os cidadãos e a sociedade, para se poder encontrar o justo equilíbrio entre o poder do Estado e a liberdade dos cidadãos, entre o indivíduo e o bem comum.

Hodiernamente, a política e a governança têm sido extraordinariamente desafiantes. Requerem, mais do que nunca, paixão, sabedoria, ética e espírito do bem comum e profundas e radicais transformações na forma de fazer política e na forma de governar.

Estamos preparados para esta grande revolução do Século XXI?

* Artigo publicado pelo autor no Facebook.

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Redação