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Motivo Fútil
Colunista

Motivo Fútil

A morte de Giovani não foi acidente ou obra do destino!

A generalidade da comunicação social portuguesa, que após um longo e lamentável silêncio, tratou de abordar o caso com uma superficialidade confrangedora, tem tentado convencer a opinião pública de que a morte de Giovani terá sido originada por “motivos fúteis”.

Os senhores entrevistados alegam que o jovem cabo-verdiano terá sido alvo dos atos de extrema violência, perpetrados por um grupo de indivíduos (possivelmente alcoolizados) à saída de um local de diversão noturna.

Se esta tese simplista vingar, tudo ficará mediaticamente resolvido. Os culpados serão detidos e julgados, a família enlutada receberá um formal pedido de desculpa e, após a celebração de meia-dúzia de cerimónias e homenagens, seguiremos em frente como bons irmãos lusófonos.

Esta estratégia de comunicação, recorrentemente utilizada pelas forças de segurança e pelos governantes deste país, visa amenizar a indignação dos cidadãos e abafar a voz dos grupos e associações que, em defesa dos direitos humanos, denunciam o racismo e a xenofobia subjacentes a uma série de crimes cometidos contra as populações desfavorecidas e as minorias étnicas.

Se o assassinato do jovem Cabo-Verdiano foi ou não um ato racista o tempo dirá.

O que não podemos permitir é que a apressada e extemporânea tese, veiculada pelas autoridades seja assumida, por todos, como sendo “A verdade” dos factos.

Se formos incapazes de encarar as reais motivações que terão estado na génese deste trágico acontecimento, estaremos uma vez mais a adiar o debate sobre os múltiplos fenómenos racistas que estão enraizados na sociedade portuguesa. Infelizmente, este constante adiamento tem contribuído para agudizar relações, manter impunidades e agravar problemas!

A quem serve a tese dos “motivos fúteis”?

Quais os reais interesses daqueles que se empenham em convencer-nos de que o assassinato de Giovani não teve motivações racistas?

Essa tese, direta ou indiretamente, serve os politécnicos e universidades portuguesas, sobretudo as que se localizam no interior do país. Se tal teoria não vingasse, os reitores dessas instituições ver-se-iam forçados a assumir que no seio dos seus pacificados e multiculturais campus académicos, existe de facto, um racismo latente, responsável por uma série de atitudes discriminatórios que, por vezes, extravasam os muros das instituições!

Serve esta tese a uma restrita casta de agentes e governantes portugueses e cabo-verdianos, que há décadas cooperam no sentido de transformarem a Academia Lusa num porto-de-abrigo de uma série de negócios. A rentabilidade desta cooperação é tal que tudo se justifica, até esconder o racismo numa gaveta!

Afastado (escondido) o racismo e recuperada a cordialidade institucional, podem os parceiros de negócio continuar a engendrar as políticas, os normativos e os protocolos com que promovem a aproximação entre estados. Quanto à origem e especificidade dos problemas, que esta aproximação irresponsável potencia, jamais dirão palavra!

A tese dos “motivos fúteis” serve também aos inúmeros negociantes que orbitam em redor deste florescente mercado académico. O reconhecimento oficial, da existência de comportamentos racistas, seria trágico para o negócio em expansão, essa sombra pesada afastaria os clientes, criaria desconfiança, alimentaria os medos e despertaria ódios, o que seria péssimo para os investimentos e transações económicas!

A dita tese serve ainda aos institutos protetores da língua portuguesa, que aqui e ali vão consolidando as suas estratégias hegemónicas, no sentido de recuperarem a sua posição neocolonialista de stakeholder nos mercados africanos. Debates em torno do racismo ou da supremacia ariana não são bem-vindos nestes institutos.

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Portugal tem uma população envelhecida, o que conjugado ao reduzido índice de atratividade que o interior do país apresenta, levanta sérios problemas de sustentabilidade económica e conduz a um crescente abandono das terras.

Os Institutos e Politécnicos não estão alheios a essas vicissitudes. O decréscimo substancial de número de alunos, conjugado com a profunda crise financeira internacional que Portugal viveu, obrigou a definir um conjunto de estratégias para solucionar parte dessas dificuldades.

Sempre que este decrépito país tem um problema, de imediato se vira para os países lusófonos e, como “bons irmãos” toma como seu o que nunca lhe pertenceu.

Esta panaceia secular tem servido de inspiração a uma série de governantes, presidentes de politécnicos e alguns ideólogos do regime.

Para resolver o problema da falta de estudantes nestas estruturas educativas e assim resolver os graves problemas de sustentabilidade financeira, é simples. Vamos captar estudantes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. (PALOP)

Associação de Universidades de Lingua Portuguesa (AULP)[1]

A solução encontrada foi de tal ordem bem-sucedida, que as taxas de ocupação das vagas, nos politécnicos das periferias, subiram exponencialmente. O elevado número de alunos inscritos foi justificação bastante para facilitar o acesso dessas instituições aos financiamentos comunitários, de uma só assentada, resolveu-se o problema de sustentabilidade dos politécnicos nas periferias, e claro, reduziram-se os encargos orçamentais do estado.

Hoje, esse fluxo migratório é de tal forma importante que não é só a viabilidade dos institutos e politécnicos que dele dependem, é toda uma economia regional!

Sempre que se verificam atrasos (motivados por razões fúteis) na concessão de vistos, ou sucedem outros constrangimentos administrativos, que impedem a deslocação dos estudantes para Portugal, as economias regionais tremem.

Esta máquina de trazer alunos para Portugal está de tal forma bem oleada, que na sua estrutura operativa podemos encontrar a participação ativa dos presidentes de câmara. Envolvidos na promoção das instituições e territórios, estão também empresas, associações e organizações não governamentais, que a pretexto de conhecerem a realidade dos países de onde são oriundos os alunos estrangeiros, se apresentam como facilitadores do processo de captação de estudantes.

Infelizmente, o processo que aparenta ser um negócio benéfico para todas as partes envolvidas, esconde uma cruel realidade.

Talvez o leitor não saiba que os alunos africanos, apesar de serem vitais para sustentabilidade das instituições académicas do interior do país, não têm o mesmo tratamento e apoio dos alunos estrangeiros, oriundos da Europa ou do Brasil. Os gabinetes de relações internacionais, a quem cabe a responsabilidade de apoiar os alunos estrangeiros, distinguem aqueles que chegam através dos programas de intercâmbio formal (como por exemplo o programa Erasmus) dos outros que chegam apenas com a intenção de fazer um ou outro curso. Todos os alunos, oriundos de países da CPLP, são considerados alunos regulares, beneficiando apenas de apoios indiretos como seja a redução da propina em 20%.

Pouco serve uma redução na propina destes estudantes face às dificuldades económicas que terão de enfrentar: o pagamento das rendas de casa, a aquisição de roupa para fazer face ao frio do interior do país, custear a alimentação, transportes e outras despesas mensais de subsistência básica.

Quando os alunos africanos confrontam as instituições com estas dificuldades, raras vezes encontram apoio para resolverem os seus problemas. Algumas instituições propõem aos estudantes a isenção da propina em troca de trabalho nas suas instalações. Mas, para que possam beneficiar dessas medidas, os estudantes necessitam de cumprir certos requisitos, entre os quais apresentar as declarações de IRS dos seus agregados familiares, que comprovem as suas dificuldades financeiras. Quem conhece, por exemplo, Cabo Verde sabe que uma parte da economia familiar se organiza em torno do informalismo, o que inviabiliza a obtenção dos documentos solicitados.

Nessas circunstâncias difíceis, os alunos acabam por recorrer ao trabalho temporário, muitas vezes em condições precárias e informais, sem margem para poderem usufruir do estatuto de trabalhador estudante, logo impossibilitados de conciliar a fonte de rendimento com os estudos.

Confrontados com um cenário de institucional a que os estudantes africanos estão sujeitos, no que concerne à integração social nas cidades onde são acolhidos o problema não é menor.

Os estudantes africanos, praticamente abandonados pelas instituições académicas, vêm os seus problemas agravados por uma integração social disfuncional. Está praticamente tudo por fazer, nas cidades para onde são enviados, para que possam ser acolhidos com a dignidade e respeito a que têm direito.

Cabe às instituições de ensino cumprir o legislado no Decreto lei nº36/2014 Artigo 12 As instituições de ensino superior, com a colaboração das entidades relevantes, devem tomar iniciativas desti- nadas a promover a integração académica e social dos estudantes admitidos, organizando as ações que se revelem adequadas, nomeadamente nos domínios da língua e da cultura.

Apesar desta normativa legal, os estudos mostram que a integração nas comunidades locais nem sempre é bem-sucedida, muitos estudantes relatam determinados comportamentos discriminatórios e uma certa incapacidade dos habitantes destas cidades em reconhecer e conviver com a diversidade cultural dos estrangeiros que vivem na cidade. Se juntarmos a este facto, os preconceitos enraizados na sociedade portuguesa, a propósito dos povos oriundos das suas antigas colónias, só podem resultar num desequilíbrio social, assombrado pela desconfiança, afastamento e desintegração social.

Não deixa de ser curioso neste contexto, e sintomático de uma certa tensão social, as infelizes declarações públicas do senhor ex-Presidente do Instituto Politécnico de Bragança Sobrinho Teixeira[1] em maio de 2019 - “Vocês (estudantes africanos) estão cada vez mais vocês mesmos!”, como se fosse essencial numa primeira fase de integração, os estudantes esquecerem-se de si, dos seus valores, e da sua cultura.

É neste caldo, de múltiplos interesses e negócios (nem sempre lícitos ou honrados), que todos os anos se definem os contingentes de estudantes africanos a enviar para os politécnicos e universidades de Portugal. O jovem Giovanni não foi exceção, pelo que não terá sido a futilidade do acidente ou a má-fortuna do destino a determinar o seu precoce regresso ao Fogo.

Bragança,

Pedro Brito 2020

Contos da Macaronésia

[1] http://aulp.org/publicacoes/livros-de-atas/

[1] Sobrinho Teixeira foi de 2006 a 2018, presidente do Instituto Politécnico de Bragança. É, atualmente, Secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

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Redação