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A mentira que nos contam sobre Singapura
Colunista

A mentira que nos contam sobre Singapura

“Se não tivéssemos interferido na vida das pessoas, em quem é o seu vizinho, como ele vive, que barulho faz, quando cospe ou que linguajar usa, não estaríamos onde estamos”, estas são palavras ditas e defendidas por Lee Kuan Yew, fundador de Singapura e chefe de governo durante 31 anos seguidos (1959-1990)

1. Constantemente, somos obrigados a ter de assistir à apresentação do caso da Singapura como um país que se desenvolveu de forma extraordinária, partindo do zero, ou seja, da pobreza absoluta, para o topo dos rankings económicos mundiais, tudo isso graças à sua abertura ao investimento estrangeiro. Os objetivos deste texto são dois: primeiro, mostrar que isto – tal como nos é contado – é uma grande falsidade e, segundo, mostrar igualmente que esta comparação de Cabo Verde com a Singapura é também um engano. Não se pode comparar duas realidades sociais tomando como termo de comparação apenas uma única parte dessas duas realidades, ou seja, tomando apenas a variável investimento estrangeiro!

2. Eu e o meu amigo, José Casimiro Pina, estabelecemos o esboço de uma teoria à qual atribuímos o nome de “Teoria do Pacote”. Terá correspondência com alguma profunda teoria social, ou económica, já estabelecida por algum reconhecido grande pensador da humanidade? Falta-nos o domínio dos clássicos para sabermos se assim é. No entanto, com a Teoria do Pacote, tão simplesmente queremos dizer que não há factos isolados e, muito pelo contrário, os factos têm tremenda interligação com uma série de outros factos, constituindo, assim, um pacote, um todo coerente e de efeitos mútuos

3. Quando esses que nos procuram ludibriar, nos trazem o exemplo de Singapura, nunca nos dizem que nesse país asiático existem mais três fatores altamente relevantes – e parte integrante do “pacote Singapura”: i) uma aposta séria na formação e capacitação das pessoas. Singapura disputa a liderança nos índices de educação escolar a nível mundial. Tem vindo a ocupar o lugar nº1 no ranking do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA); ii) a corrupção é punida severamente, constituindo assim, a maior garantia de que os recursos do Estado são canalizados para a construção do Estado e não para financiar o surgimento de novos ricos “da noite para o dia”; iii) o Estado é dono da maioria das grandes empresas do país, tendo dois dos maiores fundos soberanos do mundo. Para quê? Para, precisamente, permitir que o Estado obtenha lucros para financiar, por exemplo, a educação, a saúde e a habitação como base da construção de uma sociedade próspera e desenvolvida;

4. Singapura criou as bases para receber o investimento estrangeiro dele retirar todas as vantagens possíveis para financiar o seu próprio desenvolvimento. Não é o contrário! Não é o investimento estrangeiro que criou as bases para o desenvolvimento. No momento da abertura e incentivo ao investimento estrangeiro, Singapura decidiu canalizar esse investimento para a construção de fábricas, alcançando dois objetivos: criar emprego de facto – são fábricas! – e garantir que os jovens tivessem ambiente propício de treinamento e especialização para, mais tarde, irem assumir as próprias fábricas do Estado! Esta é uma abordagem estratégica e de longo prazo para o investimento estrangeiro. Formou ainda quadros capazes de se sentarem à mesa das negociações e enfrentarem – técnica e politicamente – os investidores estrangeiros. E, ainda por cima, com a espada da condenação por cima das suas cabeças, colocando a vida em risco cada vez que vão a uma negociação, tendo que resistir a qualquer impulso de corrupção!

5. E vêm agora falar do exemplo de Singapura neste Cabo Verde onde as câmaras municipais vendem todos os terrenos todos os dias, sem planificação, nem concursos transparentes! Onde tanto o comprador como o dirigente facilitador da venda têm ficado ricos! Este Cabo Verde onde não se mede a “corrupção”, mas sim a “perceção da corrupção” – sim, “perceção” – ou seja, o que as pessoas acham que vêm e não aquilo que existe! O mesmo país onde o governo – 44 anos depois da independência – ainda está somente no anúncio da criação de um vago e não vinculativo Conselho Nacional de Prevenção de Corrupção, enquanto Singapura tem um Gabinete de Investigação de Práticas de Corrupção (CPIB) criado em 1952, mesmo antes da independência do país! Singapura investiga práticas e Cabo Verde conversa sobre o “achismo”, a perceção! Em 2017, esse gabinete recebeu 778 queixas de corrupção, tendo investigado 103 casos – com um aspeto tremendamente relevante – além do facto de que lá existem queixas: é que o gabinete investiga tanto o setor público como o privado - o que seria um sacrilégio em Cabo Verde! Sendo os privados a dominarem com 92% de casos de corrupção investigados!

6. Por isso, é fundamental afirmar, de forma categórica, que é mentira que o investimento estrangeiro tenha financiado o desenvolvimento de Singapura. A análise do fenómeno de desenvolvimento não pode ser feita a partir de uma única variável, essa do investimento estrangeiro. O desenvolvimento é um pacote integrado. Nunca nenhum país do mundo passou a ser desenvolvido devido ao financiamento de estrangeiros. Aliás, esta é uma das mentiras mais bem contadas da história recente da humanidade! Um país, como Cabo Verde, com apenas 5 % de quadros superiores (Censos 2010)zero% de Orçamento do Estado para Investigação e Desenvolvimento (I&D), zero vírgula qualquer coisa de intelectuais e pensadores nacionais – a “pensarem pelas suas próprias cabeças” – vai dar o salto para o desenvolvimento com base nesse investimento estrangeiro que tem o lucro como prioridade!? Em que país do mundo isto já aconteceu?!

7. O embuste maior ocorre quando são pseudoliberais – defensores do livre mercado, do Estado mínimo, da liberdade individual e da iniciativa privada– a recorrerem à Singapura como exemplo de sucesso do investimento estrangeiro. O paradoxo reside no facto de Singapura limitar imensamente a liberdade individual – é proibido mascar pastilha elástica (chewing gum ouxingua) e tem instituída penas judiciais em chicotadas; tem um regime de partido único – há um único partido, o Partido da Ação Popular que já passou 54 anos a ganhar todas as eleições, desde a independência em 1965 até hoje; o Estado é dono da maior parte das empresas essenciais como telecomunicações, energia e transportes terrestres e aéreos, e detém 80% das habitações do país, num programa de construção de casas sociais, cuja aposta Singapura iniciou desde os anos 60 e continua até hoje! O embuste ainda se agrava porque Singapura é considerado uma forma de socialismo bem-sucedido

PSFenómeno social total é um conceito criado por Marcel Mauss a partir da análise do trabalho desenvolvido, nomeadamente, por Bronislaw Malinowsky na Papua Nova Guiné, onde observou as tradições “kula” e “potlatch”, entre 1914 e 1918. Talvez, seja uma correspondência à nossa Teoria do Pacote, meu e do José Casimiro Pina. Sendo assim, podemos afirmar que o desenvolvimento é um fenómeno social total, dito de outro modo, o desenvolvimento é um pacote e nunca o resultado de um único fator isolado.

1. Singapore tops latest OECD PISA global education survey(Cingapura lidera a mais recente pesquisa global sobre educação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA, sigla em inglês) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)

http://www.oecd.org/education/singapore-tops-latest-oecd-pisa-global-education-survey.htm

2. RGPH 2010 – CABO VERDE EM NÚMEROS

http://ine.cv/wp-content/plugins/ine-download-attachments-by-zing-developers/includes/download.php?id=6597

3. Em Singapura, alemães são condenados a chibatadas por vandalismo

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2015/03/05/interna_mundo,474061/em-cingapura-alemaes-sao-condenados-a-chibatadas-por-vandalismo.shtml

4. Annual Statistic Report 2017– Press release

https://www.cpib.gov.sg/press-room/press-releases/corruption-singapore-remains-low

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine