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Dos TACV ou quando a perversão atinge um grau inimaginável
Colunista

Dos TACV ou quando a perversão atinge um grau inimaginável

1. O contrato é um dos símbolos mais importantes da civilização humana. A existência de um contrato significa um compromisso assumido, uma palavra dada que, por motivo de honra, será cumprida, respeitada. Um contrato é, ainda, a garantia de transparência e uma prova inequívoca de boa fé entre as partes envolvidas. É assim nos negócios privados, tratados entre quintais de indivíduos e, por razões ainda maiores, deveria também ser sempre assim no caso de negócios públicos, do Estado, por conseguinte, em representação do povo de uma Nação inteira;

2. Por isso, a não divulgação do contrato assinado entre o Governo de Cabo Verde e a empresa Loftleidir Icelandic é quadruplamente grave e, antes de mais, põe em causa a própria Democracia porque, pura e simplesmente, desapareceu de vez o tão indispensável sistema de contrapesos que é uma característica das mais importantes do sistema democrático. Ao olharmos para, pelo menos oito das instituições que deveriam contrabalançar o exercício do poder, o diagnóstico é deveras desolador: a comunicação social pública, sobretudo, e de maior audiência, não questiona em força sistemática; a Procuradoria Geral da República não investiga; o Tribunal de Contas não fiscaliza; a Presidência da República já não pede para o Governo “pôr todas as cartas na mesa”; aos partidos políticos da oposição são negados documentos; a sociedade civil emudeceu-se; e os intelectuais das universidades não escrutinam este tempo presente. Não há quem valha este país, se não, uma réstia de vozes;

3. A primeira gravidade que representa a não divulgação deste contrato sobre os TACV é que, agora, ficou mais evidente que o Governo de Cabo Verde já adotou como prática normal de funcionamento do Estado a não apresentação de contratos dos negócios que realiza. Não mostrou o contrato com a Binter para os transportes aéreos inter-ilhas; não mostrou o contrato com a Transinsular para os transportes marítimos, também, inter-ilhas; e, agora, não mostra o contrato assinado com Loftleidir Icelandic. Com que moral poderá o Governo da República exigir aos cidadãos que cumpram, por exemplo, com os seus deveres fiscais e de transparência se é o próprio Governo que adotou como prática corrente a instransparência, ou ocultação, nos negócios do Estado? Chegando mesmo ao cúmulo de uma ministra da República explicar, descaradamente, como faz no seu ministério para fintar o Tribunal de Contas!

4. A segunda gravidade advém da constatação da fragilidade dos governantes de Estados pobres e dependentes como Cabo Verde que se revelam incapazes de pensar fora dessa gigantesca caixa mundial em que os recursos do país são oferecidos a privados multinacionais, numa via que jamais irá permitir a autossuficiência desse mesmo desafortunado país. A Binter está aí para provar que pagamos mais caro do que antes e estamos mais pobres do que anteriormente. Cabo Verde não tem aviões, não tem autonomia, não tem nada, em matéria de ligação aérea entre as ilhas. Estamos piores! Essa visão de curto prazo, antipatriotismo e incapacidade dos governantes é que abrem os ventres do país ao lucro desenfreado. Onde está um único país que atingiu o desenvolvimento seguindo este modelo de vender o país? Mostrem-mo!

5. É pensando na terceira gravidade que pergunto se não deveria haver também uma espécie de Tribunal Penal Internacional para as empresas multinacionais que esventram os países pobres e muito mal representados nas negociações por técnicos medianos e impreparados? Como julgar e combater a exploração do cacau pela Suíça que tem os maiores lucros do mundo com a venda de chocolate sem ter um único pé de cacau nas suas hortas? É essa mesma atitude desprezível que faz com que o Congo – antepenúltimo lugar no Índice de Desenvolvimento Humano, posição 176 num total de 178 países – veja o seu ouro e diamantes a alimentarem os lucros das ourivesarias de Genebra e Antuérpia. Quão impunes se sentirão as “Loftleidirs Icelandics” deste mundo para se apoucarem de países frágeis à venda como este “Cabo Verde de hoje em dia”?

6. Não há como evitar esta fina alegria de ver o António Costa, logo após ganhar as eleições, em 2015, a anular a venda da TAP efetuada 11 dias antes pelo Governo de Passos Coelho, também este, incapaz de pensar fora da caixa do FMI e do Banco Mundial. Anulada essa privatização, a TAP segue pujante, recebendo em finais de novembro de 2018, o primeiro Airbus 330-900neo do mundo! É preciso sublinhar: o Governo do Partido Socialista entregou a gestão a privados, mas garantiu 50% da TAP para o Estado de Portugal de modo a que sempre tivesse a última palavra nas decisões estratégicas da companhia. Daí o gozo com os caboverdeanos ao se afirmar de forma pomposa que foi privatizada 51% dos TACV. Assim, o Estado – estrategicamente – não manda nada! Por isso, é chacota quando o Primeiro-ministro aponta rotas, para, logo de seguida, o verdadeiro patrão – dono de 51 % – vir dizer que só vai fazer rotas rentáveis. É que quem manda não é o Primeiro-ministro!

7. A quarta e última gravidade desta prática – do primitivo homem das cavernas – de ocultação de contratos é que depois de Binter, Transinsular e Loftleidir Icelandic, o que o Governo de Cabo Verde está a demonstrar, já não é a sempre baixa arrogância – é mais do que isso. É a demonstração de um total desprezo por todos os caboverdeanos, nas ilhas e na emigração. Desprezo que é extensível a todas as instituições nacionais “reféns da cachupa” trocada pelo silêncio – também este, vil. É o Governo a dizer que se lixem todos. Este desprezo é a tradução mais fiel possível da expressão normativa preferida deste Governo, o “sem djobi pa ladu”. Sem se importar com nada. Será possível a perversão descer ainda mais baixo?

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine