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Faz sentido enganar com o estágio?
Colunista

Faz sentido enganar com o estágio?

1. Chegamos a um ponto em que, talvez, seja uma boa medida de autoproteção, o cidadão começar a andar com um dicionário debaixo do braço! Tão frequentes se tornaram as tentativas de confundir, ludibriar, criar perceções e “impor sentido”, em simultâneo com a proliferação de pessoas, instituições e governos que querem mudar a realidade e apostam em mudar os nomes das coisas mais simples que conhecemos desde sempre. É o caso desta última jogada de tentar enganar o cidadão de que “estágio” é a mesma coisa que “emprego”. Não é!

2. Importa distinguir! Em Cabo Verde, o emprego é constituído por um contrato e com um salário que na função pública, por exemplo, para um licenciado começa nos 65 mil escudos. Sem considerar os chamados quadros privativos como institutos, agências reguladoras, etc., em que o vencimento base ronda os 100 mil, um pouco menos ou muito cima. Enquanto este programa de estágios, agora apresentado como uma “solução” para o problema do desemprego em Cabo Verde, paga aos jovens a quantia de cerca de 32 mil escudos. Desde logo, trata-se do mesmo trabalho pela metade do preço mais baixo que é o público;

3. É claro que o jovem, ansioso por entrar no mercado de trabalho, nem sequer olha para o montante da retribuição. Na verdade, é o que menos conta para ele. O pior e imoral é o Governo de um país contar, precisamente, com o desespero desse jovem para, por um lado, ludibriar que está a criar emprego, e, por outro, alimentar a ilusão desse mesmo jovem, ao vender-lhe a ideia de que no final do estágio está um posto de trabalho com um contrato definitivo à espera dele. É que estes programas de estágio são apresentados como se de emprego definitivo se tratassem! Lá vão os pais, tios, amigos, padrinhos, madrinhas e vizinhos, a incitar o coitado do estagiário com um “nha fidju, odja si bu ta anda dreto, pa ora ki txiga fim de stagio, pes faze-u kontrato”. Assim, o ciclo da ilusão fica completo, com a transferência da responsabilidade de contratação para o triste estagiário, quando desde o início não estava previsto contratação nenhuma para ninguém. Basta ir comprovar se no orçamento do serviço ou da empresa que acolhe o estágio, tem lá uma rúbrica destinada à contratação de estagiários;

4. É neste contexto que não me restam quaisquer dúvidas: só governos fracos e incapazes de criar emprego é que se vangloriam com a criação de programas de estágios. Pior ainda, com o único objetivo de ludibriar os menos atentos e tirar proveito – sem qualquer pudor – da pobreza e consciência de dificuldades reinante entre os jovens que se vão formando, sabedores da ausência de uma única perspetiva de saída futura nas suas vidas. Torpedeados por dívidas com propinas e barrados pelo Centro Comum de Vistos, nem se apercebem do tamanho do logro que são esses estágios sem saída orçamental garantida;

5. Sem esquecer os malabarismos estatísticos a que essas contratações de estagiários se poderão vir a prestar. É fácil imaginar um questionário sobre o emprego numa data cirúrgica, na exata altura em que há o “boom” de estagiários. Somados a outros anúncios de inovações e criação de negócios, mesmo que falidos à partida, uns 1000 estagiários e novos proprietários representarão um acréscimo de 4,5% em relação aos estimados 22 mil funcionários públicos. Serão sempre mais números para continuar o processo de ilusão nacional!

6. Depois de quatro orçamentos de Estado e jogos básicos de secretaria à volta do PIB, num cenário cada vez mais longínquo dos irresponsáveis 45 mil postos de trabalho prometidos durante a campanha eleitoral, entramos, gradualmente, num ambiente de artimanhas diversas de modo a lançar dados estatísticos destinados apenas a servirem de munições para debates de mera porfia, enquanto a larga maioria de jovens continua o seu caminho de ilusão criado pelo anúncio de milhões para financiarem estágios e nenhum centavo para a contratação de estagiários depois da conclusão do estágio. É a precariedade como triste visão para a juventude deste país!

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SOBRE O AUTOR

Francisco Carvalho

Político, sociólogo, pesquisador em migrações, colunista de Santiago Magazine