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Clara Marques. Nosso maior projeto é a criação do Museu da Educação em todos os países da CPLP
Entrevista

Clara Marques. Nosso maior projeto é a criação do Museu da Educação em todos os países da CPLP

Com 42 anos de trabalho oficial prestado à causa da educação em Cabo Verde, esta colecionadora do património educativo cabo-verdiano continua ainda no ativo. Ela é rosto do Museu da Educação e nesta conversa com Santiago Magazine, neste abril, mês do professor cabo-verdiano, Clara Marques, faz uma incursão pela história da educação no arquipélago, e afirma que pretende desenvolver um projeto de criação do Museu da Educação em todos os países da CPLP.

Santiago Magazine – A senhora tem uma longa experiência no setor educativo. Agora que está aposentada, continua no ativo dinamizando o Museu da Educação – o primeiro e único em Cabo Verde. Gostaria que explicasse como surgiu a ideia para este projeto?

Clara Marques - Trabalhei na educação durante 42 anos, desempenhei várias funções no Ministério da Educação, e também da Defesa. A partir de 1982, enquanto delegada da educação da Praia, me convidaram para integrar a Inspeção e durante as minhas visitas inspetivas verificava que muitos materiais tinham tendência a desaparecer. E questionei-me como será possível a geração mais nova, no futuro, venha a conhecer o que se fazia e como era a sala de aula dos outros alunos, dos pais e dos avós. E foi a partir deste questionamento que comecei a fazer a recolha e a colecionar alguns materiais e equipamentos para um dia, quem sabe, vir a criar um museu e colocar tudo isso nesse museu. E mesmo a nível das palmatórias, das varas e outros materiais de castigos corporais que se utilizavam muito na altura, eu tomava dos professores e perguntava porquê estavam a fazer isso. E respondiam “inspetora não é para utilizar, para dar nos alunos, são os pais que trouxeram”. Eu tomava e dizia-lhes que é para serem colocados num museu. Vinte anos se passaram, continuei a fazer esta recolha iniciada em 1985, e fui à Alemanha fazer uma pós-graduação. Ali visitei o Museu do Ensino. Pensei “aqui está uma ideia brilhante, que já tinha no meu sonho e tenho de trazer este sonho à realidade”. Quando voltei, comecei os contatos com os decisores no Ministério da Educação e da Cultura. Em 2009, demos corpo ao projeto.

Dez anos da Associação para a Promoção do Património Educacional em Cabo Verde e do Museu da Educação. Como foi dar corpo a este projeto?

Agora, em 2019 estamos a comemorar dez anos do Museu da Educação e da Associação para a Promoção do Património Educacional em Cabo Verde. Convidei um grupo de especialistas na área da educação, da museologia, da história e do ensino para fazermos o museu da educação. Começamos a pensar como fazer isso se somos uma pessoa coletiva, não somos uma instituição, como poderá ser. Daí surgiu a ideia de criarmos uma associação que acabei por dar o nome de “Associação para a Promoção do Património Educacional em Cabo Verde”. Depois da criação da associação, com a sua personalidade jurídica, começamos a procurar formas de materializar este projeto. Tendo em conta que o museu e a própria associação é para a defesa de todo o património educacional, valorizar e preservar o património educacional, achamos importante trabalhar com o Ministério da Educação, da Cultura e com as universidades, uma vez que a vertente investigação – que é uma proposta que temos para apostar na área da investigação e formação e preservação de todo o material ligado à educação. Na altura apresentamos o projeto à Universidade de Cabo Verde e fizemos um protocolo em 2013. Também fizemos um protocolo com o IPC enquanto entidade que coordena e tutela os museus no país e com a Ribeira Grande de Santiago que é património da humanidade. Em termos de protocolos e parceiros contamos com estas instituições

Como tem sido a vossa atuação? Que ações ou projetos a Associação e o Museu desenvolvem?

Em termos de equipamentos e materiais temos, até este momento, um acervo de mais de mil e duzentas peças que se distribuem em manuais escolares, carteiras, caixa métrica, enfim, tudo o que antigamente se utilizava nas escolas e, também, muitos livros, utilizados no tempo colonial e após a independência. Quanto ao acervo de antes da independência temos alguns, mas faltam outros. Trabalhamos com uma técnica destacada pelo Ministério da Educação e dois estagiários. E com estas condições temos estado, dentro do possível, a trabalhar. Penso que o mais importante são as visitas ao Museu. Trabalhamos com as escolas, fazendo muitas atividades. Comemoramos muitas efemérides – como o Dia do Professor, o Dia da Biblioteca Escolar –, algumas destas datas não têm sido habituais serem comemoradas. Temos vários outros projetos, como, por exemplo, criar o Dia Nacional do Estudante, lançamos em janeiro do ano passado, um livro “Cancioneiro Infantil”, que vamos cantar nas escolas. Como sabe, a escola possui manuais de língua portuguesa, de matemática, mas nunca teve um livro de educação musical e os professores não tinham recursos para ensinar a música. Fizemos a recolha das canções que se cantam e se cantavam nas escolas, com pauta e com música, para oferecer às escolas. Oferecemos às delegações do Ministério da Educação, para além das ofertas às nove bibliotecas escolares que foram criadas pelo Ministério da Educação. Estamos num processo de recolha para um novo livro que se chama “Vamos brincar”, que são jogos e cantigas de roda e vai ser lançado no âmbito dessa premiação. Para além disso, e para mim, o nosso maior projeto é a criação do Museu da Educação em todos os países da CPLP. Este projeto seria um museu físico e virtual e o lançamento de uma obra sobre a história da educação em Cabo Verde e nos países da CPLP. Neste momento, Cabo Verde assume a presidência da organização e como tem um pilar que é “Cultura”, nós achamos que é fundamental que fosse feito alguma coisa nesse sentido. Já tivemos um encontro com o Senhor Presidente da República e com o Ministro da Cultura e ficou o compromisso de fazerem alguma coisa para materializar este projeto. Um outro projeto da Associação é o “Leciona” e que busca instituir o Prémio do Professor Cabo-verdiano.

Um reconhecimento e homenagem ao trabalho dos professores cabo-verdianos

Este nome – Leciona – deve-se ao facto de a maior atividade do professor é lecionar. Este prémio cumpre as regras da UNESCO, com um regulamento e com critérios previamente definidos. Começamos com os professores do 1º ao 8º ano de escolaridade, para no próximo ano alargar para os outros níveis de ensino secundário e superior. Também, nós quisemos que todos os professores de Cabo Verde pudessem participar, e logo no início do ano passado, solicitamos o Alto Patrocínio do Presidente da República e do Ministério da Educação. Fizemos o lançamento do projeto, elaborando os regulamentos, e em setembro do ano passado todas as Delegações do Ministério da Educação já tinham em mãos estes documentos para a seleção dos professores. Ainda, criamos uma Comissão de Honra constituída por todos os ministros e antigos ministros da Educação e Presidentes da República, para prestigiar ainda mais este evento. Criámos uma equipa de jurados com professores do ensino superior, secundário e básico, para avaliarem os trabalhos dos candidatos. Temos inscritos de todas as ilhas com exceção da Brava e Maio. Dessas inscrições fizemos uma primeira seleção com a escolha de dez semifinalistas, e a partir dos trabalhos do júri foi selecionado cinco candidatos. Estes são da Praia, mais precisamente do Liceu Domingos Ramos, da Boavista, do Tarrafal de São Nicolau, do Sal e do Porto Novo. Estes candidatos entregaram um Plano de Ação – que inclusive consta do regulamento –, porque não queremos que o Professor do Ano fique por aqui, mas que faça algo ao longo do ano do mandato dele. A estes planos de ação foram atribuídos uma pontuação e destes candidatos e da pontuação efetuada teremos o Professor do Ano. Este, de acordo com a conversa que tivemos com a Ministra da Educação, deverá ter um Ano Sabático para ser o Embaixador do Professor para dinamizar formações, palestras, etc., que fizesse a diferença ao longo do mandato até a próxima edição.

A Gala “Professor do Ano” fecha o mês do Professor com a premiação do Professor do ano no âmbito do projeto “Leciona”. Como vão os preparativos?

A Gala para a premiação do Professor do Ano acontece no mês do Professor. Como sabe Abril é o mês do Professor, e diversas são as atividades dinamizadas pelos atores educativos, nomeadamente as Delegações do Ministério da Educação. E a gala realiza-se na última semana de abril. Em concertação com as delegações, optámos por esta data, e será no dia 27 de abril na Assembleia Nacional, que culmina com o fecho do mês do professor. A abertura deste evento contará com a realização de uma conferência intitulada “O Professor” e os painelistas abordarão dois temas. O primeiro que é “o professor como catalisador de aprendizagens” proferido por Jorge Brito e o segundo abordará aspetos voltados para a “liderança e o papel do professor”, proferido por Victor Borges que são duas pessoas que já desempenham, ainda desempenham, importantes cargos no setor educativo.

O professor cabo-verdiano é inovador embora o seu trabalho é invisível

O objetivo deste prémio é incentivar o professor fazer algo diferente e a ser inovador. No fundo este prémio pretende premiar a inovação na educação. Por isso, pedimos que os professores entregassem projetos e começassem a fazer algo diferente da rotina da sala de aula, mas que comece a impactar na comunidade onde a escola está inserida, nas áreas do ambiente, social e cultural. Penso que o projeto tem tudo para dar certo, pois como inspetora e como professora conheço bem as nossas escolas, e é com este projeto que queria incentivar um pouco os professores e motivá-los ainda amais porque a profissão do professor é muito nobre e gostaríamos que todos os que estão nessa profissão façam algo de nobreza, com dedicação, com amor e também dar muito mais visibilidade aos trabalhos que eles fazem. Os professores fazem muita coisa que fica no anonimato, dentro da sala de aula com seus alunos e mais nada. O objetivo não é só a excelência no ensino, mas sobretudo dar visibilidade aos trabalhos pedagógicos, à inovação que desenvolvem na escola, que fiquem mais motivados na sala de aula e contribuírem para o desenvolvimento da sociedade cabo-verdiana que é o objetivo máximo da profissão do Professor.

Tem uma trajetória de vida que passa por dois mundos: o antes e o depois da independência. Ao longo deste importante período da sua vida, quais são os grandes desafios, que enquanto professora, enfrentou?

Comecei a trabalhar em 1973/1974. Foi nesse ano letivo que terminei a formação na Escola de Formação de Professores – que este ano faz 50 anos. Fui uma das primeiras alunas da Escola de Formação de Professores do Posto Escolar e os melhores alunos, naquela época, eram colocados nos lugares mais distantes. Disseram-nos que tínhamos de ficar nas zonas menos desenvolvidas. Eu fui destacada para trabalhar em Calheta de São Miguel. Naquela altura Portugal queria mostrar que estava a fazer algo em prol da educação e criou essas escolas, não só em Cabo Verde, mas também na Guiné, Angola e Cabo Verde. Foi a partir daí que conheci a forma de trabalho no setor educativo, na época colonial. A nível da inspeção era muito rigorosa e coerciva. Eu vivi aquele período. O Inspetor português que estava cá não permitia que saísse, por exemplo, 4 km fora do nosso espaço laboral, para irmos a nenhum sítio, nem para recebermos o nosso salário. Eu não podia nem ir receber o meu vencimento no Tarrafal de Santiago, que era a sede do concelho. Tive que arranjar um procurador para receber o meu salário, porque o professor tinha que ficar no lugar onde tinha sido destacada. A política colonial era colocar os melhores alunos da Escola de Professores para os concelhos e ilhas mais distantes. Foi nesta ordem de ideias que fomos distribuídos por estes lugares distantes. Eu só vinha mensalmente visitar a minha família. Lembro do meu pai ter ficado doente, não pude vir visitá-lo, enviei uma carta e esqueceram de lhe entregar e fiquei um mês sem saber notícias dele. Em São Miguel, colocaram-me como coordenadora das escolas da freguesia e assim eu tinha que acompanhar todo o trabalho burocrático e administrativo das escolas – os balancetes, recenseamento, avaliação, etc. Passado o período de revolução pós 74, passamos a ter outras formas de trabalho, começou-se aquela fase de mudança – não diria de reforma porque não se fez um estudo-diagnóstico – que centrou essencialmente na retirada dos conteúdos de Portugal para adaptar à realidade cabo-verdiana.

Conheceu e participou de quase todas as reformas que o setor educativo no país atravessou. Conta-nos um pouco esta história?

Também passei essa fase e desafio de melhorar o sistema educativo, com a formação de professores, e trabalhamos para mostrar, que com a independência, nós somos obreiros desta grande obra. Depois, em 1987, começou a grande reforma, com a formação do PREBA (Projeto de Formação para os Professores do Ensino Básico) e do PRESE (Projeto de Formação para os Professores do Ensino Secundário), e que foi considerada a primeira grande reforma de ensino. Com a independência, tínhamos menos de 20% de professores formados, os restantes não tinham formação específica e este era o grande desafio – a formação de professores. Então, esta reforma veio trazer esta perspetiva, mas também o reforço da formação do magistério primário. Outra perspetiva desta reforma foi o alargamento do ensino obrigatório – do 4º para o 6º ano de escolaridade – e a mudança dos manuais. A mudança dos manuais foi feita no início da independência de forma muito pontual, mas havia a necessidade de se fazer uma transformação a nível dos manuais escolares em que todo o conteúdo já espelhasse a realidade cabo-verdiana. Também foi feita a nova carta escolar com a configuração dos polos educativos e dos gestores escolares. Na altura os diretores das escolas, sobretudo no ensino básico, não tinham uma nomeação, era acumulação – era professor e diretor da escola – mas não ganhava como tal. Assim foi uma grande novidade – ter gestores que não trabalhavam como professores e que tivessem, pelo menos, um subsídio. A Inspeção não podia exigir muitos dos gestores porque eram professores e não dedicavam a tempo integral a gestão da escola, logo esta ficava prejudicada. Em 1990 fez-se ajustes e em 1993/1994 partiu-se para a implementação deste grande projeto de reforma educativa em Cabo Verde.

Em 1969 iniciou-se a primeira turma da Escola de Professores, éramos quase 200 jovens, mas terminaram aproximadamente 50 para integrarem, enquanto professores, o sistema educativo. Nos anos 1970 criou-se o Magistério Primário. Em 1978 criou-se a primeira Escola de Formação de Professores a nível do Ensino Secundário. A partir de 1990 implementou-se vários reformas, como o aumento do ano de escolaridade, a lei de bases, as leis de gestão que não havia, o trabalho da inspeção educativa, etc.

Da classe docente à inspetiva. As mudanças do país.

Saí da classe docente e fui trabalhar na inspeção da educação. Comecei a trabalhar os primeiros anos em qua a inspeção é que fazia tudo. A direção geral trabalhava com a parte burocrática e administrativa. E, pouco a pouco, com a nova lei orgânica, foi criado um departamento pedagógico e a inspeção continuou a trabalhar juntamente com este departamento. Entretanto, a atividade inspetiva foi melhorando ao longo dos anos, principalmente com a lei orgânica da inspeção geral do ensino. Quando comecei em 1985 na inspeção educativa, fiquei a trabalhar com a zona inspetiva da Praia, Fogo e Brava. Quando visitava as escolas da Brava e do Fogo, os professores ficavam com receio, medo até. Mas quando chegava lá, o meu objetivo era que vissem no inspetor uma pessoa que apoia e ajuda no processo de ensino-aprendizagem e não para reprimir, colocar medo ou papel de polícia. Esse sempre foi meu objetivo e atuação.

Qual o balanço que faz do trabalho que vêm desenvolvendo no Museu da Educação?

Após a minha reforma, como já vinha dedicando à recolha dos materiais para o trabalho do museu. Ainda não há muita sensibilidade para a causa. Como é sabido, um dos indicadores da intelectualidade de um país é o número de museus existentes numa sociedade. Mas, quantos museus existem nessa nossa sociedade? A nossa média é de vinte e poucos museus. Começamos com os jardins botânicos, parques naturais e agora tem-se investido em salas-museus, os museus dirigidos pelo Ministério da Cultura, mas um museu específico de educação, este é primeiro. Temos tido muitas visitas, no ano passado tivemos uma média de seiscentos e tal alunos, professores das escolas de formação de professores, e realizamos diversas atividades com estes grupos, como exposições, debates, comemorações de efemérides. Temos estado a complementar no desenvolvimento do setor educativo no país, enquanto vertendo da educação não formal.

 

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