• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
Cabo Verde precisa canalizar dinheiro para formação de assistentes de psicologia
Entrevista

Cabo Verde precisa canalizar dinheiro para formação de assistentes de psicologia

Celina Pina Shemo, norte-americana de ascendência cabo-verdiana. Filha de mãe cabo-verdiana de terceira geração e pai de segunda geração, é psicóloga, tem uma experiência de trabalho de 27 anos sobre trauma de abusos sexuais, principalmente contra crianças. Está em Cabo Verde para partilhar sua trajetória de vida pessoal e profissional na área da saúde emocional, onde, neste exclusivo ao Santiago Magazine defendeu que “Cabo Verde precisa canalizar dinheiro para a formação de profissionais assistentes de psicologia para semanalmente trabalhar com as famílias e as vítimas de abusos, fazendo terapia.

Santiago Magazine - Quem é a Celina Pina? E porque interessou em estudar e trabalhar na área da psicologia com as questões de trauma de abusos sexuais e com a comunidade cabo-verdiana, em particular?

Celina Pina - Sou uma americana, filha de pais descendentes de cabo-verdianos. Há 30 anos que venho trabalhando na minha própria clínica, com pessoas que passaram por traumas de abuso. Antes de começar a dedicar a este trabalho, minha vida é também marcada por muita violência e tristeza desde criança. Esta tristeza começou com a separação dos meus pais. E, passava horas a fio observando as pessoas. Acho que esta capacidade de observação é um presente de Deus. Não queria estudar. Só com 27 anos é que decidi ir para a universidade influenciada por uma amiga, mas resisti a princípio porque não me achava inteligente. Fiz a licenciatura, e em 1985 fui trabalhar para a organização de saúde mental Charles Family Service e trabalhava com meninas que sofreram abusos sexuais. Estava inserida num programa intensivo em que aprendi a fazer avaliações e seguimento com crianças vítimas de abusos sexuais. Gosto de trabalhar com questões ligadas à saúde emocional. Trabalho com as comunidades portuguesa, cabo-verdiana e porto-riquenho. As pessoas não gostam e não querem falar sobre saúde mental, mas se se falar em saúde emocional as coisas mudam. As pessoas querem falar sobre suas emoções, elas passam por tristezas, zangas e situações más. Elas querem tirar estas coisas e falar sobre elas. Porém, falar sobre situações de abusos é mais difícil especialmente quando é provocado pelo pai, mãe e familiares. Nós ensinamos estas crianças e estas pessoas a falarem sobre o que aconteceu e que não devem sentir culpadas pelo que aconteceu porque a culpa não é delas. Em 1985 fomos às escolas falar sobre abuso sexual e fazer campanhas de sensibilização sobre abuso sexual, apontando que é preciso falar sobre o assunto e tirar para fora sem vergonha.

Como foi o processo de abertura da sua clínica pessoal de trabalho?

Comecei tudo muito tarde na minha vida. Quando comecei a trabalhar na organização de saúde mental, comecei a gostar de trabalhar. Mas, a organização não dava importância à cultura das pessoas vítimas de abuso. Percebi que era preciso compreender a cultura dessas pessoas. Não é só chegar e começar a falar. Primeiro, é preciso construir confiança. As pessoas que veem destes países avançam devagar na construção da confiança. Então, disse-lhes que se a cultura não tiver uma importância central, vou sair da organização. Foi assim que em 1988 abri minha própria clínica, aplicando instrumentos específicos no trabalho com traumas de abusos.

Está em Cabo Verde pela terceira vez. E entre os contatos que está a fazer é a socialização das conclusões do seu livro. Do que trata estes dois livros?

O livro “Five Keys to emotional oneness. The emotional detox system” foi escrito inspirado em Cabo Verde. Em 2011 estava no Plateau e observei que várias pessoas com doenças mentais deambulavam pelas ruas. Pensei comigo, existem várias pessoas com problemas nessa área, tenho que fazer alguma coisa. Assim, escrevi o livro para também os psicólogos utilizarem os instrumentos deste livro para ajudar estas pessoas. Escrevi, mas minha editora disse-me que só estes instrumentos são insuficientes. Por isso, escrevi a minha vida, a minha história de superação do trauma de abuso. Escrevi tudo a acerca da saúde emocional, o que as pessoas precisam saber e fazer em relação à sua saúde emocional. O segundo livro intitulado “Training curriculum. Five Keys to emotional oneness. The emotional detox system”, escrevi-o para os profissionais e a universidade.

Penso que seria importante traduzi-lo para português para maior acesso aqui em Cabo Verde, pois escrevi-o pensando em Cabo Verde e sobre a sua utilidade para o país. Estou disponível para dar treinamento a profissionais e estudantes sobre trabalhar com os instrumentos deste livro.

Tem outros projetos que quer desenvolver em Cabo Verde?

Sim. Pretendo abrir duas clínicas para atendimento a vítimas de traumas de abusos com base nos instrumentos que descrevo no livro. Pretendo fazer terapia na comunidade. O trabalho com as pessoas com trauma de abusos tem de ser diferente, os instrumentos não podem ser iguais.

Em Cabo Verde tem vindo à público muitas denúncias de abusos sexuais contra crianças principalmente no seio familiar. Existe acompanhamento para estes casos. Entretanto, a justiça é lenta. Pensa que o seu trabalho pode ser importante para estas situações?

Cabo Verde precisa canalizar dinheiro para a formação de profissionais assistentes de psicologia para semanalmente trabalhar com as famílias e as vítimas de abusos, fazendo terapia. Estes profissionais farão o seguimento da situação das vítimas pessoalmente.

A Celina é uma mulher que nasceu nos EUA, filha de pais nascidos nos EUA, mas de descendentes cabo verdianos. Conta-nos um pouco mais da sua história e destas ligações e conexões com os cabo-verdianos, com Cabo Verde e com a cultura cabo-verdiana.

Minha mãe é neta de cabo-verdianos que emigraram para os EUA e meu pai é filho de cabo-verdianos. Nasci em Nova Iorque. Falamos em crioulo, fazemos tudo desde criança em crioulo. Minha clínica se chama VGA Mental Health em homenagem à minha avó que se chamava Vanilia, pois ela me deu vida, ela é minha inspiração. Quando tinha 8 anos, meus pais separaram. E entrei em crise e passei 5 anos com uma tristeza profunda. Aos 14 anos fui morar com meu pai e madrasta. Foi um momento duro da minha vida e com minha madrasta em particular. Fui para o liceu neste período, e no liceu quando tinha 16 anos, um colega me violou. E não falei com ninguém. Falei isso no meu livro, porque é uma forma de curar e as pessoas precisam saber que violação e abuso sexual não é culpa da vítima. Minha madrasta disse ao meu pai que não era mais virgem e ele disse-me que tínhamos de ir ao médico para comprovar que ainda era virgem. Deixei o liceu e casei com um estranho para não passar pela situação de ser observada pelo médico. Ele aceitou casar comigo. Mas, a verdade é que se tivesse contado ao meu pai o que tinha acontecido comigo, não teria passado por várias situações na minha vida como consequência deste casamento. Depois de 2 anos após o casamento, terminei o liceu. Fui trabalhar, não pensei que podia ir à universidade. Uma amiga me incentivou a ir para a universidade, e tinha 27 anos quando fui para a universidade. Fiz licenciatura em negócios, e 4 anos depois fiz a licenciatura em psicologia e comecei a trabalhar na minha área de formação. Depois, fiz o mestrado em 1 ano num programa de 2 anos e fiz o meu doutoramento em 7 anos. Em 1987 tive a minha filha, ela é médica. Quando ela nasceu, minha vida mudou completamente, me deu mais vida. E a partir daí, comecei a trabalhar na minha própria clínica. Eu trabalho com crianças que sofreram traumas de abusos sexuais, mas também trabalho com mulheres idosas que sofrerem abusos. Com os meus pacientes trabalhamos com os instrumentos que consiste em falar e, escrever, sobre cinco pontos – ou cinco chaves – da vida das pessoas. No fim da terapia, a pessoa já tem a sua história contada e querendo pode transformá-lo em livro. Os cabo-verdianos gostam de contar estórias. Eu aprendi a falar o crioulo a partir das histórias de Ti Lobo que eram contadas pela minha avó. Já temos, culturalmente falando, uma vantagem para ultrapassar os traumas de abuso colocando para fora tudo o que aconteceu porque ajuda as pessoas a perceberem que não é culpa delas os abusos.

Partilhe esta notícia

SOBRE O AUTOR

Redação