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Damaja. O decifrador de espíritos
Cultura

Damaja. O decifrador de espíritos

Tive sorte de me apaixonar aos onze anos pela minha colega de carteira, ainda na sexta classe. Ela era baixinha, cor clara e olhos de “manguinho” me lembro dos lábios dela, pareciam borda das levadas polidas só com arreias e cimentos ou lisa com massas em HD.

Tive sorte por ela ter namorado com o meu primo. Aquela situação despertou em mim uma grande dor. Pelo menos uma dor que ficou na família. Uma dor de cão e de aprender a esconder os sentimentos. Até hoje não esqueci daquilo, por ter sido um grande covarde, nunca disse que a amava, ou admirava os lábios de carne morta em sua boca. Íamos a escola a tarde, de mãos dadas e eu com uma boa língua na boca dizia tudo para que ela sentisse feliz, ela sorria das minhas pequenas bizarrices, sorria como se não amanhecesse outros dias. Passou dias, anos e passamos de classes, nossos corpos e mentes transformaram e eu com passar dos tempos sem nunca conseguir dize-la as mágicas palavras do amor, a cada ano que passa me especializava nas coisas do desamor e fazer as pessoas desgostarem de mim. As vezes só pela feiura das minhas palavras.

Uma das minhas grandes derrotas do coração foi ver o meu primo segurando as mãos dela na praça da cidade, eu era novo, por isso, me doía muito aquele gesto e quando se é novo sempre tem espaço de sobra para se sofrer, e eu gostava de sofrer por ela. Aqueles olhos de bunukis. Aquela coisa doía porque sentia sempre no mesmo lugar, a onde os atores das telenovelas diziam.

-ôh, meu coração, chorava, chorava muito e eu já me tinha habituado ao choro.

Hoje já não me faz qualquer cocegas, até acho chato essas coisas de pegar nas mãos e sair a abanar o ar como se o balançar das mãos não fosse um mau vício daqueles que assaltam coisas alheias, inclusive o assalto que o meu primo me fez. Aqueles lábios de bife bem passado na sua cara. o apertar já é pacífico, não precisavam de abanar, e o meu primo fazia isso, bater no meu antigo coração de adolescente cada vez que ele abanava a mão dela para cima e para baixo. Desde aquele solavanco das mãos eu fiquei deprimido, quase que fiquei contra as coisas de deslocamento, quase não saia de casa para não ser visto ou ver pessoas em tons de romances e dai resolvi inventar os dês tons contra o sofrimento, dês porque o meu país tem dês ilhas, mas não deu certo, é difícil inventar receita contra o subimento num país de mulheres lindas por dentro e por fora.

Já tinha passado quatro anos que não saia de casa a não ser ir a escola de manhã, só para não encontrar com a minha antiga paixão, morávamos na mesma zona e na mesma rua, na nossa rua morava só pescadores, caminho de terra batida e plana, a tarde quando os pescadores regressavam da faina sentavam a voltas das arvores de uma ponta a outra, uns tomavam o merecido chipi naiti (grogue) outros consertavam linhas e cordas, e eu ficava entre a parede com um buraco na minha casa a espreitar todo aquela situação, gostava daquilo era um dos tons que inventei contra o sofrimento. Quando saia a rua fazia a questão de ter cuidado para ela não me ver a não ser eu a vê-la, apesar de já ter terminado com o meu primo, e eu ainda com a língua naquele estado, já sabem. Travado.

Vivíamos quase lado a lado até ela sair para o curso superior na cidade. Continuei cada vez mais medroso em relação às mulheres. Já tinha quase dezanove anos e não tinha beijado uma única boca, nisso eu era virgem até no projeto reprodutor, as vezes dava umas espantadas até a dobra da calça. Coisas de macho meio frouxo.

Uma das coisas mais preclaras que aconteceu comigo desde adolescência até juventude foi ter ouvido os conselhos da minha tia que me incentivava a ler muito e que aos poucos iriamos ver o mundo de um outro modo, eu pensava que havia outro modo de ver o mundo, até hoje só vejo o mundo real como ela é, inclusive o Nelson Rodrigues disse isso, talvez por ter observado o mundo da minha forma, me apelidaram de “estranho”. Também por ter inventado os dês tom mais imbecil contra o sofrimento por amor.

Teve uma vez que o meu tio bateu na minha tia e ela desfez-se a chorar e perguntei se nos obrigar a ler é a forma de evitar aquilo? Ela simplesmente não disse nada, somente sustendo o seu braço com hematomas e ouvidos a arderem de palavras que chocam. Mulher quando chora, metade do mundo gripa. Esse foi mais um tom que inventei. Uma mulher de sete filhos é mais personagem do que a autora da própria invenção. Naquele mesmo dia, ele disse para ela.

-Sua fruta desprezível. Naquele linguajar meio aportuguesado de quem foi até rio tejo e mal se sentiu imigrante já tinha sido enviado a terra por salbaxaria.

Mais tarde descobri que a minha tia não enfrentava o meu tio porque ele é de uma das ilhas daqui por perto, a ilha que cospe fogo do vulcão. Cada vez que discutiam, ela ficava com medo. Dizia.

-tenho medo de vestir de viúva a rigor. A mania dessas gentes de por o termo a vida antes da hora quase levou a minha tia aos sete palmos de terra devido a violência do titio.

Depois daquele momento a vida piorou muito e a tia adoeceu e teve nove messes no hospital e o titio não foi além da terceira classe e ficou difícil para ele aos cinquenta anos encontrar trabalho, então decide procurar o trabalho perto do cais da cidade. O cais velho da cidade, dos poucos espaços onde se podia ver a ilha do fogo a distância. Quase todos os anos vinham a novidade da morte de pessoas da ilha e as vezes por razões absurdas. É uma ilha que foi habitada por portugueses, franceses, escravos africanos e árabes, raça que não tem medo da morte. Ao lembrar desse pormenor entendo o medo da minha tia em não responder aos insultos do meu titio, eles que são descendes dessa raça não tinham medo de por termo a vida. Bom, não sei até onde ele fazia falta, um homem salbaxu, sem trabalho, violento e um fiel consumidor de grogue fedi. Um homem sem bom gosto.

Ainda com dezanove anos fui trabalhar de guarda noturno, guardava um barco e uma casa majestosa, eu de altura mediano, corpo franzino, e sem um pingo de medo na alma e sono nos olhos, quase não dormia, devorava livros pela noite a dentro, lia revistas despertai e sentinela para entender o mundo e uma certa metafisica existencial, mesmo assim não gostava muito dos assuntos religiosos. De segunda a sexta-feira não afastava muito da casa, limpava, passava o pano, tirava o carro a rua lavava e depois voltava a por na garagem. Aos sábados ia a praia do mar ver menininhas que vinham da cidade da praia e os reformados tarados que iam observar o traseiro delas no biquíni, eu deveria fazer aquilo, de dizer a algumas delas como gostava delas, como queria beija-las até o sol se perder no horizonte, mas, a língua ainda estava travada, poderia falar de Germano Almeida, Camões, Alam Poe, Tchalé, fazer-se de intiligentinho, preferia ficar calado observando pessoas a conversarem, até que um dia conheci um colombiano que me pagava sem escudos por dia para compra-lo um caderno e todos os dias antes de ele sair da água o caderno tinha de estar na mesa acompanhado de um bule de café e um maço de cigarro tudo isso no bar feito de contentor a beira da praia, eu fazia os meus deveres piamente bem, sempre andava com o meu livro na mão, na maioria das vezes escritores estrangeiros, a leitura é um mão vicio para quem quer ter a certeza, e eu até hoje não tenho nada disso, leitura me tirou isso. Ter certeza. E aquele colombiano escrevia um caderno de 80 folhas todos os dias, e eu sempre me perguntava a mim mesmo. Será que ele anda a procurar certezas naquelas folhas?

Todas as noites sentia os pescadores falando e se arrumando para enfrentarem o escuro do farol na faina de madrugada. Levantava ao amanhecer para ajuda-los na recolha de peixes na rédea. Os peixes na sua maioria antes de chegar a terra estavam vivos, muitos pescadores de pedra e vara usavam-nas para fazerem iscas para pescarem os peixes de maior dimensão. Dava uma mão com a ideia de que poder-me-iam dar uma bolsinha daqueles peixes para levar a minha tia, mas nunca me deram e nunca levei a mal.

Admirava aqueles pescadores jovens e velhos, mais pela coragem de terem confortado somente com aquela vida e os próprios filhos os seguiam naquilo, muitos eram os meus vizinhos. O mar dava peixe a qualquer hora que eles lançavam linhas, varas ou rédeas ao mar, por não terem formas de conservarem os peixes grande quantidade era devolvida ao mar ou abandonadas no cais e na arreia.

Certa vez um grande tubarão invadiu a baia de Tarrafal durante um mês ninguém ousou entrar na água nos finais de semana, arreia ficava inundada de pessoas que vinham da cidade capital e turistas estrangeiros que visitavam o campo de concentração, atrações turísticas da cidade. Sempre vinham experimentar as águas límpidas do mar de presidente. Cedo se perceberam que foi devido ao lançamento de grande quantidade de sangue e de goelas de atum que atraiu aquele tubarão e pela mesma via ensaiarão capturar aquele peixe numa noite de lua cheia, segundo as dicas e conselhos do senhor damaja, o pescador mais antigo do bando daqueles velhos marítimos de peles murchas e capas amarelas, afirmou que pelo comprimento do tubarão aquele não poderia ser coisa normal e que a noite aquele peixe não viam bem. Era na calada noite que deveriam botar a isca para pega-lo e deixa-lo morto durante a noite inteira até amanhecer e assim o espírito malignos sairiam e a abundancia dos peixes continuaria no porto, todos os pescadores na sua maioria eram familiares e descendentes de familiares um do outro, todos eles são analfabetos e acreditam nos ensinamentos dos mais velhos e iam a missa nos domingos e aos sábados. Aceitaram a opinião do damaja e assim foram debaixo de uma reza insuportável, e as vezes um silêncio chato ao puxarem o animal sacralizado pelo velho damaja para fora da água do mar.

Ao amanhecer, descobriram que o tubarão era velhinho e estava ferido além do arpão que levou naquela noite. Quando abriram eles espantaram ao encontrarem quatro bolça cheias de farinhas com uma coisinha preta e que mais tarde ficaram a saber que se chamava gps, mais uma vez o grande damaja apanhou a bolça e rasgou dizendo em voz alta que tinha razão ao espantar os espíritos malignos.

-vejam até comem farinha trigo. Ele apanhou as quatro bolças de farinha, ainda com alguma proteção, rasgou com a faca e concluiu que aquilo não era qualquer farinha trigo, e pós a pensar numa possível explicação daquilo dizendo que o interior do tubarão alterou o gosto e o odor daquela farinha, assim lançaram ao mar, uns até apelidaram o tal achado de farinha espirituosa.

Até hoje não tiveram explicação da morte repentina do velho damaja só dizem que o velho damaja foi convidado para vender os peixes la na casa dos novos visitantes mergulhadores da cidade e naquele mesmo dia ele morreu. Uns diziam que foi chuchu, outros diziam maus espíritos que saíram do tal peixe grande e por último defendiam que é o efeito dos espíritos da farinha. Assim como o damaja explicava as coisas, as pessoas explicavam a morte dele. Dias depois de os visitantes repentinos terem chegado a cidade desapareceram sem deixar pistas. As pessoas consideravam eles corajosos por serem dos únicos que mergulhavam a noite e a distância bastante longe da terra, la nas imediações do velho farol, era uma admiração que tinham por eles e até chegaram a convida-los para conhecerem associação dos pescadores. Eu, matinha alguma distância de tudo aquilo que era novo na cidade, lia os jornais todas as semanas e lia com muita atenção a parte internacional. Nem mais, observei bem na foto e conclui que aqueles rostos eram daqueles homens altos, cabelos compridos e de tatuagens pelo corpo todo e usavam a língua de césar Augusto da Roma. Sem dúvida, foram eles que roubaram a alma de damaja devido a aquela farinha. Acabaram de ser presos no país de camorra na posse de vente e cinco quilos da adorável cocaína.

Tinham um método eficaz de treinamento de tubarões para a entrega das drogas usando o GPS em suas barrigas. Depois daqueles acontecimentos fez-se uma reza ao redor da praia na presença dos familiares de damaja e eu mesmo estava presente. Acabei por ver a sua filha que há muitos anos não via, a minha ex. colega de carteira, todos os pescadores foram cumprimenta-la e dar os merecidos pêsames. Foi um grande teste para mim. O teste da língua. Classifiquei por essas palavras aquele momento.

Me aproximei dos restantes familiares e a cada minuto que passava chegava mais perto dela até nos confrontarmos cara a cara, olho por olho, aqueles olhos grossos e a carne ainda mais morta na boca acompanhado de um vermelho de Báton lindo, mas também morta nos lábios. Normalmente abraça-se e se cumprimenta de beijos. Eu fiz o que ninguém tinha feito. Todo atrapalhado estiquei-lhe as minhas mãos, ao mesmo tempo dei lhe beijos em vez de dizê-la, Sentidas condolências, acabei por dizer outra coisa depois de ela me ter agradecido pela presença.

-keli é ka nada, também estarei aqui na próxima morte. Continuas com o problema de destravar as palavras e sentimento, disse ela entre soluços e choro brando nos meus ouvidos. Ela sentiu que eu não queria dizer aquilo, mas a presença da mulher que amamos transmite uma segurança sem aparato e lugar onde segurar ganas de fazer algumas outras coisas.

Foi difícil dizer aquelas palavras e sentir que a língua não destravava dentro da boca. Eu ainda amo ela de língua travada. Essa é a conclusão.

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