• Praia
  • 29℃ Praia, Cabo Verde
O racismo cabo-verdiano contra cidadãos da África Ocidental. A queda da máscara
Ponto de Vista

O racismo cabo-verdiano contra cidadãos da África Ocidental. A queda da máscara

No passado dia 25 de Outubro, Cabo Verde e o mundo ouviram, através da Televisão de Cabo Vede (TCV), que um cidadão nigeriano que residia na cidade da Praia, fora encontrado morto numa lixeira na localidade de Achada Fátima, concelho de Santa Cruz.

O cadáver foi removido pela Polícia Nacional (PN) e pela Polícia Judiciária (PJ) que o conduziram ao Centro de Saúde de Santa Cruz e depois à morgue do Hospital Dr. Agostinho Neto, na cidade da Praia. A inexplicável ausência da médica legista no ato do levantamento do corpo deixa muitas e sérias interrogações. No Centro de Saúde de Santa Cruz foram feitas algumas fotos ao cadáver, de vários ângulos e em várias posições. O malogrado estava nú, trajando apenas um boxer de cor vermelha, o que permitia verificar que o corpo estava muito maltratado, com sinais evidentes de desmesurada sevícia. O pé direito estava mutilado e com inconfundíveis marcas de que tenham utilizado, para o efeito, uma rebarbadora. Percebia-se que a parte da cara que ficara exposta ao sol se aparentava pintada de preto e, a que ficara para o chão estava totalmente esmagada, o que se pressupõe, tê-lo aí colocado depois de o terem torturado, sob um plano orquestrado e milimetricamente executado. Colocaram-no muito comodamente, numa rampa mesmo debaixo da janela da casa do pai, onde ele também vivia com alguns familiares, com o firme propósito de dissimular a queda ou mesmo o suicídio. Possivelmente pela pancada que terá levado na parte da cabeça, os olhos saíram completamente fora das órbitas. Segundo informações de uma enfermeira que se encontrava de serviço no Centro de Saúde de Santa Cruz, ele tinha alguns dentes arrancados e o escroto exageradamente avolumado.

O racismo aí cheira-nos a podre. Pois, mesmo estando no mês de Outubro, período em que a chuva pode cair a qualquer momento, um nigeriano, pejorativamente apodado de “Mandjaku”, caboverdianamente sinónimo de “Preto”, não mereceu a dignidade um pouco acima de um rato, de um gato ou de um cão para que a PJ se procedesse às investigações, recolhendo, em tempo útil e necessário, os vestígios do crime. O corpo foi recolhido da lixeira, conforme se soube da própria boca da médica legista, com ordem expressa para ser sepultado imediatamente, por motivos de saúde pública. Tal só não aconteceu porque a lei impôs um período para se identificar a vítima antes de declará-la indigente e abandoná-la a um metro e meio debaixo da terra.

Passaram-se, entretanto, os dias 25, 26, 27 e 28 de Outubro, sem que as autoridades se efetuassem recolha de vestígios para investigação, ou efetuassem qualquer diligência que visasse indiciar suspeito ou suspeitos. Só no final do dia 28 de Outubro, Sábado, é que a máscara caiu. O nigeriano noticiado pela TCV, que teria sido encontrado indigentemente “fuliadu” na “boronsera” (ribanceira) sem uma pata, com olhos esbugalhados, desdentado, cara pintada de preto, escroto avolumado, selvaticamente torturado, já não era outra pessoa senão um cabo-verdiano de nome Edmilsom Fernandes Tavares, mais conhecido por DEGO, de 35 anos de idade, filho de Lázaro Sanches Tavares e de Maria Helena Mendes Fernandes, natural do concelho de Santa Cruz, residente em Achada Fátima, irmão de mais 19 filhos de seu pai.

Confirmado de que era cabo-verdiano e não nigeriano, consequentemente, também não podia ser rato, nem gato e nem cão, eis que, cinco dias após ao sucedido, se desloca ao local uma equipa da PJ a fim de recolher vestígios de sangue que se encontrava espalhado por toda a redondeza, não se importando que fosse num domingo. Em Cabo Verde um “Mandjaku” não merece o respeito, muito menos a dignidade intrínseca de um ser humano.

Na Segunda-feira, dia 30 de Outubro, o corpo foi liberado, com instruções de que o caixão não podia ser aberto e que o funeral deveria ser feito de imediato. Na declaração emitida pela Delegacia de Saúde da Praia para o registo de óbito, constava que a causa da morte tinha sido “queda de altitude”. Descontentes, alguns familiares exigiram ver o corpo para se verificarem de que tenha sido autopsiado. Não lhes foram concedidos tal permissão. O irmão mais velho teve a oportunidade de falar com a médica legista e esta lhe confirmou o conteúdo da declaração, acrescentando ainda que o cadáver já se encontrava, no ato do levantamento, em avançado estado de decomposição. Que o pé mutilado teria sido comido pelo cão e que na condição que a cara se encontrava, se justificava pela putrefação do corpo. Questionada sobre a causa factual da morte, a médica remeteu-o, tão friamente, para a PJ.

Ora, a tese de putrefação não convenceu e jamais se convencerá alguém, porque várias pessoas confirmam e se dispõem a depor perante autoridades, em como às 3h00 da manhã de 3ª feira, dia 24 de Outubro, viram o DEGO a consumir num quiosque, acompanhado de um amigo e vizinho, perfeitamente identificado. Entretanto, 4ª feira, 25 de Outubro, por volta das 9h00 da manhã, sensivelmente 30 horas depois de lhe terem visto vivo pela última vez, o cadáver é encontrado abandonado na lixeira.

Pelo que se depreende, a médica legista não se dignou em dirigir-se ao local e proceder-se ao levantamento do corpo, como manda a lei, como também não se procedeu à realização da autópsia, tão simplesmente, por sentir-se nojo e repugnância em tocar num “Mandjaku”, sem “prakenha” e a cheirar fedi. Negou-lhe, assim, de forma flagrante e inoportuna, a dignidade que qualquer ser humano merece, isto é, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Como é óbvio, nessas situações, muitas informações se veiculam. E o ministério público, como fautor da ação penal, não deve descurar, nem muito menos ignorar pistas que possam levar à descoberta da verdade e caça aos criminosos. Entretanto, no dia 7 de Novembro, salvo erro, o referenciado irmão mais velho se dirigiu às instalações da PJ na cidade da Praia, denunciando que havia uma casa onde se suspeitava ter sido o palco de toda a trama. Pois, uma irmã lhe teria dito que alguém lhe dissera ter visto sangue e roupa encharcada de sangue no interior da dita casa. Que a mesma havia sido lavada com criolina, petróleo e outros produtos para despistarem os vestígios. Que ainda, havia uma casa nas imediações, equipada com câmara de vídeo e que poderia ter captado imagens que coadjuvassem nas investigações. Essa casa é propriedade de um magistrado do ministério público que trabalha na Procuradoria-Geral da República.

Entretanto, nenhuma diligência ainda tem sido feita. No passado dia 16 de Novembro, a mesma casa (suspeita) foi novamente lavada com água e cal e, uma enxurrada de água esbranquiçada foi filmada a correr pela estrada abaixo. Foi de imediato comunicado à PJ e a Procuradoria da República, por conseguinte, nada ainda, absolutamente, foi feito. Sabe-se, porém, que a pedido de um familiar, a PN recolheu amostras da enxurrada e remeteu-as à Procuradoria de Santa Cruz que, a única diligência que efetuou foi a de enviar as referidas amostras à PJ na cidade da Praia.

Dessas inércias pode-se depreender seguintes ilações:

  1. A médica legista, furtando a sua obrigação de estar presente no ato da remoção do cadáver, por pensar-se que na verdade se tratava de um “Mandjaku”, certamente emitiu, quiçá, forjou um relatório putativo, excluindo a hipótese de o morto ter tido uma morte matado;
  2. O ministério público, igualmente, teria a brigação de assistir à autópsia e, não o tendo feito, está a incorrer numa ilegalidade grosseira, embora se sabe que a nossa lei permite a que o ministério público delegue essa missão à PJ;
  3. Sendo certo, tendo a PJ furtado na sua obrigação, por igualmente se julgar que o morto era “Mandjaku”, o “Mandjaku” que depois virou “DEGO”, certamente não terá interesse em descobrir criminosos, uma vez que existe um relatório da autópsia dizendo outras causas da morte.

Ora, a família do malogrado quer justiça. Apenas justiça. Pede uma investigação séria e profunda, bem como uma explicação plausível dessa inércia. Exige a exumação do corpo e realização da autópsia sob a supervisão de um assistente ao processo.

À Comunidade Internacional, à Comissão Nacional dos Direitos Humanos e da Cidadania, à Amnistia Internacional, ao Tribunal Penal Internacional (TPI), à Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CDAO) e, a todos os defensores da justiça, pede que investiguem esse vergonhoso descaso, em defesa e respeito para com os concidadãos da África negra.

Cabo Verde perdeu um filho. Perdeu Edmilsom Fernandes Tavares, vulgo “DEGO”, mas não pode perder o direito de ser justiçado e nem os africanos que cá vivem e trabalham devem perder a dignidade que lhes são inerentes.

Os familiares vão providenciar uma manifestação à porta do Tribunal de Santa Cruz no próximo dia 8 de Dezembro, pelas 13 horas, reclamando justiça.

Armindo Martins Tavares

Irmão da vítima

Partilhe esta notícia

SOBRE O AUTOR

Redação